O homem que virou suco (1981)

João Batista de Andrade (Brasil)

Sem legendas

Do diretor João Batista de Andrade, O Homem que Virou Suco aborda a resistência de um poeta popular diante de uma sociedade opressora, que o obriga a eliminar suas raízes.

No filme, Deraldo (José Dumont), escritor de cordel, paraibano recém-chegado a São Paulo, é confundido com o operário Severino, nordestino, que em um ato de revolta assassina o patrão a facadas. Sem documentos para comprovar sua identidade e perseguido pela polícia, Deraldo é obrigado a fugir do quarto que aluga e, com isso, inicia um percurso de desencontros enquanto sobrevive na metrópole. Forçado a abandonar a venda de seus poemas, passa por diversos lugares, de servente de um coronel paraibano a operário da construção civil. Na condição de migrante é submetido, apesar de fundamental para o desenvolvimento da cidade, a uma série de preconceitos e explorações. Ao término do filme, quase desesperançoso, ele finalmente encontra Severino e, após comprovar sua inocência, retoma a produção artística para escrever um cordel intitulado O Homem que Virou Suco, fazendo de sua carreira um poema de resistência da identidade nordestina.

Com uma visão crítica do processo migratório, O Homem que Virou Suco apresenta o personagem Deraldo, cuja trajetória pode ser lida como a síntese dos enfrentamentos vividos pelos nordestinos que migram para a cidade de São Paulo. Na época da realização do filme, quando o movimento grevista ganha impulso na região paulista do ABC, vários cineastas voltam suas câmeras para o registro documental e ficcional do trabalhador. Cineastas como Roberto Gervitz (Braços Cruzados, Máquinas Paradas, 1979), Leon Hirszman (ABC da Greve, 1979, ou Eles Não Usam Black-Tie, 1981), Renato Tapajós (Linha de Montagem, 1981) e o próprio Andrade são responsáveis por uma filmografia que, na passagem dos anos 1970 para a década de 1980, coloca as contradições do trabalho urbano no centro do debate.

Focando o tema da migração e do trabalho, O Homem que Virou Suco sublinha, com base na narrativa de Deraldo, o preconceito existente na grande cidade contra os nordestinos. Questão que aparece, de forma contundente, nas cenas em que o personagem, tentando conseguir um emprego na construção de uma estação de metrô, é obrigado a assistir a um curta-metragem no qual Lampião, representado por xilogravuras, é ridicularizado e transformado em um Jeca Tatu que não consegue adaptar-se em São Paulo. Assim, de modo perverso, o filme do metrô se apropria da arte nordestina para induzir os imigrantes a abandonar seus traços culturais. Andrade, em entrevista concedida à Folha de S.Paulo, em 1980, explica que o “título é jocoso, tirado dessa expressão popular que diz que se a gente bobiar (sic), o sistema espreme e transforma em bagaço”.

Embora Deraldo sofra nesse ambiente, o filme constrói um personagem cuja postura, diante dos infortúnios, não é de passividade. Em sua imaginação ele se vê ironizado por estar vestido de cangaceiro no centro da cidade, prevalecendo, no entanto, sua autoimagem como herói popular que, solitário, enfrenta as engrenagens da metrópole. Próximo ao famoso cordel A Chegada de Lampião ao Inferno, no qual o poeta pernambucano José Pacheco imagina Lampião como bravo guerreiro que vence todas as forças de Satanás, O Homem que Virou Suco tem em Deraldo a representação daquele que busca resistir às adversidades impostas pela ordem política e social constituída. Contra aqueles que o rebaixam nas relações de trabalho ou por preconceito, o protagonista insiste em rebelar-se. E intui a necessidade de ser companheiro dos demais migrantes que se encontram na mesma situação. Representativa de sua personalidade heroica – entre a revolta e o afeto – é a sequência na qual lê para o colega de trabalho analfabeto uma carta com notícias familiares enquanto a câmera, na mão, registra os rostos dos demais operários que, atentos, ouvem com emoção palavras vindas do Nordeste. Os olhares direcionados a Deraldo – uma espécie de público a observar o artista – parecem demonstrar o afeto sentido por aquele que resiste às pressões da cidade e é capaz de dar voz às lembranças.

Em 1981, Jean-Claude Bernardet comenta como Andrade, ao criar um personagem “intelectual do povo”, demonstra seu próprio desejo de fazer de O Homem que Virou Suco um cinema político capaz de chegar às classes populares. Na análise de Bernardet, a busca de Deraldo pelo operário Severino, seu duplo, e a transformação dessa trajetória em poesia de cordel ilustram a vontade do artista em comunicar-se com as massas. Como observa o crítico, quase ao término do filme, enquanto o protagonista vende sua poesia nas ruas de São Paulo, quatro planos documentais da greve dos metalúrgicos de 1979 aparecem na montagem: “Tive, de repente, a impressão relâmpago de uma imensa ampliação da roda de pessoas que cercavam o poeta. Enquanto acompanhava o desenrolar da ação, estabeleci com as imagens de São Bernardo uma espécie de diálogo em segundo plano, mais ou menos nos seguintes termos: eles são o público leitor/ouvinte possível do folheto O Homem que Virou Suco; a literatura que Deraldo escreve fala desses operários que constituem seu amplo público; eles são o público espectador desejado do filme”.

Sobre O Homem que Virou Suco, outra leitura é a proposta pelo crítico José Carlos Avellar. Para ele, a busca de Deraldo por Severino pode ser interpretada como uma metáfora do artista que procura entrar em contato com o universo daquele – o operário – que é representado poeticamente. A investigação do protagonista sobre o passado de seu duplo provém, nessa abordagem de Avellar, da necessidade de conhecer e vivenciar o cotidiano do outro como etapa fundamental da criação artística.

Em O Homem que Virou Suco, as influências da poesia popular não se resumem ao enredo do filme, em diálogo com a literatura de cordel. Aproximando-se da cultura nordestina como experiência estética, Andrade parece tomar emprestado o improviso típico do repente. Ele propõe uma dramaturgia em que os atores, sem um roteiro completamente fechado, e a câmera de Aloysio Raulino, sem marcações rigidamente preestabelecidas, têm a permissão de improvisar diálogos e movimentos. A esse processo, partindo de sua experiência anterior como repórter, o cineasta ainda acrescenta uma mistura de encenação ficcional e aspectos documentais. Em depoimento para o livro O Homem que Virou Suco: Roteiro de João Batista de Andrade, o diretor conta que essa proposta de linguagem nasce do desejo de realizar um “cinema de intervenção”: “Na sequência quando Deraldo entra no refeitório da obra mesmo, os operários que estão ali são reais. Coloquei uma barata no prato do Zé Dumont, então ele está comendo, vê o inseto e dá um murro na mesa. O que eu não esperava é que os operários começassem a virar coisas e jogar os pratos”.


🎞️ www.imdb.com/title/tt0178585

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