O jogo das redes sociais e aplicativos permite experimentar diferentes identidades, mas exige respeito às regras. É preciso entender esses mecanismos para evitar manipulação e mistificação das massas.
As conversas nas redes e aplicativos sociais são um grande jogo em que as pessoas são suas peças e personagens. Nesse sentido, tem tudo a ver com história oral, com história digital, com ficção, e tem a ver com a verdade/mentira também. Mesmo quando o sujeito pretende ser o que não é, no fundo ele “está sendo”. Aquilo que você quer ser é parte daquilo que você é. Quem afirma que quer ser médico, de alguma forma já é um pouquinho médico. Só pelo fato de querer ser, ele já passa a ser. Quando o sujeito diz que quer ser assassino, matar um montão de gente, no fundo já é um pouco assassino, se você permitir. Fernando Pessoa já dizia que “o poeta é um fingidor, finge tão completamente, que chega a sentir que é dor a dor que deveras sente”. O sujeito que entra no chat e diz ser uma loira de olhos azuis, talvez queria experimentar ser isso. Não quer dizer que queira sê-lo de verdade. Ou seja, nessas experiências você pode vivenciar coisas que não é.
Um jogo que em que um sujeito ganhe pontos fazendo xixi no elevador ou atropelando tudo não é necessariamente nocivo, porque faz parte de um experimentar. Quem, ao jogar War, já não foi um grande general que arrasou continentes? No fundo, esse sujeito pode ser o maior pacifista do mundo, incapaz de matar uma mosca.
Faz parte do processo civilizatório viver coisas que você não é, até para saber que não quer ser. Quando você lê um romance passado na Bessarábia, pode achar que foi ótimo ler o livro, mas não pretende ir passar suas férias lá. Quando joga um game em que você é um grande assassino nas catacumbas do planeta tal, você descarrega toda uma energia. Isso não é barbárie. Barbárie é um sujeito no boteco da esquina quebrar uma garrafa e espetar a garganta do outro, assassiná-lo porque estava um pouco alto e o alvo falou que torcia para o time que ele odeia. Processo civilizatório é o sujeito dar vazão a toda essa carga primitiva e agressiva em processos criativos, seja na arte, na música. Beethoven foi um grande louco. Só que usou essa loucura para produzir sinfonias fantásticas. Van Gogh era outro louco, que utilizou sua insanidade na pintura.
Raul Seixas cantou “enquanto você se esforça pra ser / um sujeito normal e fazer tudo igual / eu do meu lado aprendendo a ser louco” e “controlando a minha maluquez / misturada com minha lucidez / vou ficar com certeza / maluco beleza”.
Quando alguém está jogando xadrez, acha que isso é civilizado, sem se aperceber que representa uma agressão recíproca porque é o simulacro de uma batalha. Mas o xadrez muda também, ao longo do tempo. Por exemplo, o xadrez nasceu como chaturanga na Índia; era um jogo para quatro pessoas, característica dos jogos indianos. Quando foi para os países árabes, o xadrez virou shatranj, e de quatro pessoas reduziu-se o número a duas. Ao invés de ter dois reis no exército, passou-se a ter um vice-rei. Só quando o xadrez veio para o ocidente é que o vice-rei passou a ser chamado de rainha. E do mesmo jeito o elefante: ao vir para o ocidente, a estilização das duas orelhas do animal fazia lembrar a mitra do bispo. Então, ele passou a ser chamado de bispo. E, quando no xadrez ocidental o peão chegava na última fileira, ele ficava lá parado esperando ser comido. Foi preciso vir a Revolução Francesa para mudar o papel do peão no xadrez. Só depois disso é que o peão passou a poder ser promovido a uma peça nobre. Há poucos anos, um professor norte-americano da New Left inventou uma variação do xadrez chamada Luta de Classes, em que você coloca de um lado os dezesseis peões e do outro as oito peças nobres. A estratégia entre ambos é completamente diferente, com táticas específicas.
Voltando à questão dos bate-papos ou chats na rede, eles são um jogo em que as pessoas entram, inventam o seu personagem e, como em todo jogo, é necessário um mínimo de respeito às regras. O estraga-prazeres não é aquele que rouba no jogo, é aquele que se recusa a jogar. O sujeito que procura jogar uma carta que não tem está de algum modo fazendo parte do jogo. O que pega a sua parte no baralho, põe no bolso e vai embora, esse é o verdadeiro estraga-prazeres, porque está se recusando a jogar.
Uma experiência muito interessante para se fazer num bate-papo nas redes ou aplicativos é sobre aquelas tradicionais perguntas que os interlocutores se fazem. A primeira coisa que as pessoas querem saber é se você é homem ou mulher. Experimente entrar com um nickname dúbio, que não informa isso. Você vai ser bombardeado. Em seguida querem saber o local geográfico onde você está, depois a idade. Se você conseguir fazer um jogo sutil de não passar nenhuma dessas informações, as pessoas entram em paroxismo cognitivo. As pessoas precisam disso até para inventar quem você é. A invenção está dos dois lados. Você diz que tem tal altura e pesa tanto. Aí o outro começa imaginar o que quiser. Ou seja, você é responsável por aquilo que diz, mas não por aquilo que o outro imagina. Se você não der os elementos mínimos, e esse “antijogo” é muito divertido também enquanto experiência, poderá ver o quanto o interlocutor fica irritado. Eles preferem que você invente, mas que lhes forneça o mínimo para que possam imaginar o resto.
Tudo isso são elementos usados hoje para a difusão de fake news com objetivos políticos, usando elementos de psicologia das massas com grandes bases de dados dos usuários, suas preferências e sua navegação. É fundamental que entendamos estes mecanismos para que os processos de comunicação não sejam apropriados para a manipulação e mistificação das massas, hoje ainda por cima contando com plataformas de inteligência artificial.
🌐 https://vermelho.org.br/coluna/jogos-de-manipulacao-das-verdades-e-mentiras/