A tecnologia em si não é boa ou ruim, mas amplifica e potencializa a ação humana, tal como um megafone pode fazer o bom cantor alegrar multidões e o desafinado incomodar muito mais gente!
A chamada sociedade da informação e do conhecimento traz consigo impactos sociais capazes de levar a uma transformação maior que a produzida pela Revolução Industrial. Um mundo baseado cada vez mais na troca de valores simbólicos, do dinheiro à informação, vai mudar o eixo da economia, acabar com muitos conceitos atuais de trabalho, valorizar o saber e a aprendizagem. Neste contexto, os excluídos sê-lo-ão ainda mais, se não houverem políticas e ações visando combater o aprofundamento da clivagem social trazida pelas novas tecnologias, com a robótica e inteligência artificial a substituir trabalhos repetitivos automatizáveis.
A tecnologia em si não é boa ou ruim, mas amplifica e potencializa a ação humana, tal como um megafone pode fazer o bom cantor alegrar multidões e o desafinado incomodar muito mais gente! A chamada “inclusão digital” pressupõe uma série de outros objetivos conexos que não os meramente tecnológicos, podendo ser uma ação comparada ao “cavalo de Tróia”, que, após permitir a penetração nas muralhas antes indevassáveis da cidade, em seu bojo carregava guerreiros sabedores de qual estratégia implementar.
A primeira expectativa que em geral se tem em relação a projetos de inclusão digital é a da realização de cursos. Cursos de quê e para que serviriam tais cursos? Em geral, para dar um adestramento visando obter um certificado, este destinado a cumprir a expectativa de obtenção de trabalho remunerado. Aqui temos também mais um grande desafio: o formato taylorista e fordista de transmissão de informações, que não assegura a construção do conhecimento e, ao contrário, promete demagogicamente uma capacitação que o formato de tempo disponível e a qualificação dos envolvidos não atende.
Hoje qualquer pessoa praticamente possui um smartphone no bolso, que faz mais do que os aparelhos comunicadores de “Jornada nas Estrelas” faziam (exceto solicitar teletransporte). A maior limitação, porém, está no acesso a conexões banda larga, essenciais principalmente para os conteúdos em vídeo, pois o custo no Brasil é muitas vezes maior que na maioria dos países.
Ações de inclusão digital devem ser focadas em questões significativas, engajando a comunidade (bairro, sindicato, escola, associação), verdadeira rede humana local de aprendizagem cooperativa, focando nos contextos significativos do uso das aplicações, sejam elas organizar uma luta coletiva, pagar uma conta, redigir o currículo e enviá-lo por e-mail achar receitas de culinária interessantes na Internet e depois compartilhá-las. Dicas, histórias do dia-a-dia, resolução colaborativa de problemas, fazem com que a tecnologia seja mais uma ferramenta de troca humana e que seja apropriada como tal.
Saber usar bem as plataformas e ferramentas digitais não dá emprego para ninguém, mas certamente não as saber utilizar poderá fazer com que oportunidades sejam perdidas. Saber ler e escrever, raciocinar, planejar, sistematizar e, principalmente, ter uma leitura crítica do mundo, é isto que dá significado à apropriação das tecnologias.
Obviamente, o foco de ações inclusivas são as populações desfavorecidas, mas para atingir tal objetivo é importante não esquecer que ações abrangentes e efetivas devem ser integradoras e potencializar outros segmentos da sociedade, pois a cidadania é alcançada digitalmente quando a rede é tecida incluindo excluídos e não-excluídos.
Outro aspecto essencial é o da geração e captação de conteúdos em língua portuguesa. Tão importante quanto a criação de novos conteúdos é a captação dos já existentes ainda não digitalizados, sejam documentos em papel impresso, sejam relatos de histórias de vida e saberes populares e comunitários, captados em áudio ou vídeo, pensando na diversidade de conteúdos, na convergência de mídias e na formação de redes e comunidades.
Num mundo em transformação, onde cada vez mais as tecnologias digitais são o veículo de transporte da mente e instrumento essencial de trabalho, não podemos preparar as novas gerações para um mundo de subalternidade, tanto do ponto de vista individual quanto na perspectiva da nação, pois inclusão digital não é apenas ensinar a utilização da tecnologia ou disponibilizar o acesso à rede: é preciso haver um trabalho de identificar as demandas informacionais, especialmente aquelas que impactem diretamente na formação de habilidades ou aperfeiçoamento de competências.
As ações de inclusão digital devem incluir empresas, entidades sociais, intelectuais, estudantes, empresários, políticos, militares, sindicalistas, jovens, pessoas da terceira idade, portadores de deficiências, homens e mulheres, tanto enquanto usuários como também como produtores de conteúdo. Afinal, não basta apenas surfar na Internet: é preciso aprender a fazer onda!
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