A digitalização e manipulação de dados impulsionam um novo imperialismo tecnopolítico, alimentando a extrema-direita e corroendo a democracia com algoritmos e exploração.
O mundo de hoje é composto de duas camadas complementares: a física, constituída de átomos, e a digital, formada de bits. O feijão que comemos tem seus nutrientes compostos de átomos, porém seu preço é feito em bits. Cada vez mais, todos os elementos da realidade são digitalizados, sejam objetos ou, principalmente, as pessoas e suas ações.
No mundo digitalizado, as pessoas definem seus trajetos através de informações de algoritmos de trânsito coletados em tempo real e retroalimentam o sistema com as coordenadas de seu geoposicionamento. Pesquisamos modelos e preços de aparelhos, encomendamos comida, curtimos postagens de amigos e desconhecidos, em uma série de ações que são mapeadas e cruzadas com todos os dados já existentes sobre cada um de nós. Isso tudo alimenta grandes bancos de dados, o tal de Big Data (grandes e complexos conjuntos de dados que precisam de tecnologias especiais para análise e compreensão), base essencial para as plataformas de inteligência artificial interagirem através de algoritmos desenhados com finalidades específicas.
Cruzando esses dados com o mapeamento de seus deslocamentos, suas buscas na internet (incluindo aquelas que você pode julgar equivocadamente estar a fazer no mais absoluto sigilo) e seus feedbacks a mensagens específicas, essas plataformas permitem uma utilização política, com finalidades econômicas, eleitorais e até culturais, sem par até hoje na história da humanidade.
Os movimentos de extrema-direita e organizações criminosas levam muita vantagem no cruzamento dessa massa de dados e na manipulação dos algoritmos (um algoritmo é uma sequência precisamente definida de instruções passo a passo, que orienta a execução de uma tarefa específica, é como uma receita para realizar uma determinada operação ou alcançar um resultado desejado). É muito mais fácil definir um algoritmo para propagar uma mensagem de ódio do que uma articulação civilizatória, assim como é mais fácil criar o algoritmo de um crime do que o de um constructo democrático participativo.
Estudemos como a coisa funciona, vendo em linhas simples como o estrategista político de extrema-direita Steve Bannon, utilizou algoritmos para segmentar e manipular diferentes correntes da população durante algumas campanhas políticas bem sucedidas, como nos casos Brexit e Trump, além da também nefasta ação em nosso país. Seu método envolvia:
Análise de dados: Coletam-se grandes quantidades de dados dos usuários das redes sociais, para entender os padrões de comportamento e preferências de diferentes grupos demográficos. Microsegmentação: Com base nesses dados, criam-se perfis detalhados de eleitores, divididos em microsegmentos com interesses e preocupações específicos. Mensagens personalizadas: Utilizando algoritmos, adaptam-se mensagens políticas para cada segmento, abordando temas ressoantes com suas preocupações individuais. Testes e otimização: As mensagens são testadas em pequenas amostras desses grupos para avaliar sua eficácia, e então otimizadas com base nos resultados. Amplificação: Uma vez identificadas as mensagens mais eficazes, elas são amplificadas através das redes sociais e outros canais de comunicação, visando influenciar a opinião pública em larga escala.
Esta abordagem permitiu a Bannon e sua clientela direcionar mensagens específicas para diferentes grupos de eleitores, explorando suas divisões e descontentamentos, aumentando assim suas chances de sucesso em campanhas políticas. Wilhelm Reich, em seu Psicologia de massas do fascismo, destaca a influência de fatores psicológicos na formação e ascensão da extrema-direita, observando que os indivíduos são suscetíveis à sugestão, emoção e identificação com o grupo, levando ao direcionamento de emoções e comportamentos coletivos. Conteúdos do tipo “mamadeira de piroca” possuem um forte impacto mistificador, demandando respostas que exigem uma elaboração mais complexa.
Para Lênin, em Imperialismo, estágio superior do capitalismo, o imperialismo é um movimento estrutural da economia capitalista, caracterizado por alguns traços fundamentais: centralização da produção em trustes e em cartéis, que resultam em grandes monopólios, com papel decisivo na vida econômica; fusão do capital bancário e do capital industrial, criando uma poderosa oligarquia financeira; a exportação de capitais adquirindo uma importância decisiva, diferente da exportação de mercadorias; e as grandes potências capitalistas partilhando o mundo entre si, criando esferas de influência e ocupando territórios.
A atual fase das guerras no planeta também precisa ser inserida nesse contexto. Carl von Clausewitz, general prussiano citado por Lênin nessa obra, disse que “A guerra é um instrumento da política. Ela deve manter necessariamente as mesmas características da política e ser medida pelos seus padrões. A condução da guerra, em suas linhas gerais, é portanto a própria política, que ergue a espada em lugar da caneta, mas por causa disto não deixa de pensar de acordo com as suas próprias leis”.
Podemos observar cada vez mais um “colonialismo do Big Data” com essas grandes corporações tecnoimperialistas atuando de uma forma que fere totalmente a soberania dos estados nacionais. Os dados captados ficam na posse exclusiva das Big Techs, os algoritmos que comandam o fluxo da comunicação e da economia são desconhecidos dos organismos regulatórios, sendo os resultados de manipulação eleitoral apenas o furúnculo da grave infecção que atinge a própria democracia.
A guerra cultural em curso e a enorme disseminação dos dispositivos de comunicação estão a dar um novo papel de protagonismo ao lumpenproletariado. Este, na concepção marxista, é uma camada da sociedade composta por despossuídos e marginalizados, sem um papel significativo na luta de classes e na transformação social, incapaz de se organizar politicamente devido à sua precária situação econômica e social – porém sendo um potencial vetor de apoio para movimentos políticos autoritários, como se viu na ascenção do fascismo há um século e seu preocupante ressurgimento atualmente.
O fascismo, com sua retórica populista, apela em geral para as emoções e ressentimentos, oferecendo uma narrativa simplificada que atribui a culpa de seus problemas a grupos políticos específicos e atraindo o apoio de massas e elites para promessas de restauração da ordem, segurança e empoderamento, baseadas em ideias de exclusão e supremacia.
A desqualificação da participação política em partidos, a dispersão das forças organizadas em pautas meramente identitárias e a destruição planejada e eficiente do movimento sindical é a tônica da ação da guerra cultural em curso, trazendo novas formas de exploração do trabalho, com a lumpenização uberizada crescente na sociedade.
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