Platão e Marx ecoam na era digital, mostrando como a realidade virtual e a economia obscurecem relações sociais e verdade.
Na alegoria da caverna, que Platão narra em seu A República, seres humanos acorrentados dentro de uma caverna desde o nascimento têm suas visões limitadas à parede da caverna, onde observam as sombras projetadas que são criadas por objetos fora de sua visão, iluminados pela luz fora da caverna. A realidade percebida pelos sentidos (as sombras na parede) e a realidade mais ampla e verdadeira fora da caverna guardam muita coisa em comum porém podem ser totalmente díspares. Platão utiliza essa metáfora para discutir a natureza da realidade e do conhecimento.
Se aplicarmos essa alegoria ao contexto contemporâneo, poderíamos relacioná-la ao mundo virtual. As sombras na parede da caverna poderiam ser as representações digitais da realidade nos ambientes virtuais, sejam jogos, redes sociais ou mesmo canais noticiosos. A limitação dos habitantes da “caverna digital” em ver apenas as sombras reflete a limitação da percepção do mundo real, que pode ser facilmente manipulada, editada, direcionada.
Este novo mundo virtual nos traz grandes desafios, pois embora possa parecer que não existe, que é apenas uma dimensão paralela, ele é a parte principal dos sistemas de trocas e de valores. Afinal, a própria economia não é isso?
Cada vez mais o valor do arroz e do feijão, da saca de cimento, é ditado por esse mundo virtual. Quem comanda o grande jogo da manipulação desses meios virtuais tem cada vez mais controle sobre o mundo real. E quem está “apenas” no mundo real, pobres, analfabetos, excluídos, pode estar a ser alienado do próprio mundo em que vive.
Uma história permite resumir isto: Lá está seu Zé no campo, cavando a terra. Aí passa o patrão dele a cavalo e fala com ele: “Oi? Tudo bem?” – ele saúda o patrão, conversam um pouco, um vai embora e o outro continua cavando a terra. Passam séculos, e está lá o seu José, ou o filho dele, ou o tataraneto, porque sempre existe um seu Zé cavando a terra; e passa o patrão, que pode ser o neto ou o bisneto do patrão do início desta história, só que agora cresceu a tecnologia e ele não passa mais a cavalo, passa num moderno automóvel, na estrada, em velocidade, abaixa o vidro fumê de seu carro e, sem parar, dá um tchauzinho para o seu Zé. Eles já não conversam mais, mas ele acena para o patrão que passa nessa nova tecnologia chamada automóvel. Passam décadas e está lá o seu Zé, ou um descendente dele, e o patrão passa, agora de avião lá no céu. Então, o seu Zé ainda dá um tchau para aquele jatinho sem saber se o patrão está a bordo ou não. O patrão olha para baixo e vê um pontinho preto, não sabe se é um seu Zé qualquer ou um boi lá no meio da propriedade. A tecnologia está a aumentar ainda mais a distância da possível comunicação. Agora, o patrão desse seu Zé passa pela Internet. O seu Zé nem sabe se ele está passando ou não, o patrão dele é virtual. Ele nem sabe se o patrão está no Brasil ou na Bélgica; ele agora desloca-se na forma de bits e não mais de átomos.
O conceito de “fetiche da mercadoria” é uma ideia central na teoria de Karl Marx sobre o capitalismo. Marx argumenta que, nas sociedades capitalistas, as mercadorias não são apenas objetos de troca econômica, mas também adquirem uma significância simbólica e social. O valor de uma mercadoria não é percebido como resultado das relações sociais de produção, mas parece ser inerente ao próprio objeto. Assim, as relações sociais entre as pessoas são obscurecidas, e as mercadorias ganham uma qualidade misteriosa, quase mágica.
Embora Marx não houvesse imaginado uma sociedade com as tecnologias digitais atuais, sua conceituação de fetiche da mercadoria continua relevante e atual no capitalismo contemporâneo, especialmente no contexto do capitalismo financeiro e da economia digital. A digitalização intensifica a aparente autonomia das mercadorias, contribuindo para a criação de um ambiente onde as relações sociais subjacentes e as condições de produção são muitas vezes obscurecidas.
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