OLHOS DE GATA

Se eu lhes dissesse que ela é uma flor em meu jardim seria uma metáfora das mais gastas. Se, entretanto, afirmasse que é todo um canteiro, uma evidente hipérbole ainda que, paradoxalmente, estaríamos mais próximos da verdade.

Conto-lhes como tudo ocorreu.

Faltavam poucos dias para minha apresentação como solista da orquestra menina dos olhos de quase todos os músicos do Brasil, ou do que sobrou do Brasil, a Sinfônica de São Paulo. Chegaria em Manaus para uma só apresentação em nosso tradicional Teatro Municipal, o orgulho da cidade, todo reformado, ressaltadas sua nobreza arquitetônica e excelente acústica, evento comemorativo do tombamento internacional da Amazônia. O solista eu, um nativo, oportunidade única em uma toda vida.

A partitura das mais difíceis: longas, intermináveis seqüências com profusão de semifusas em inesperadas dissonâncias; demorados, imprevisíveis silêncios que me obrigavam a uma absoluta atenção para os retornos a novas profusões daquelas minúsculas notas capazes de entrelaçarem, de darem nós nos dedos. E lá ia eu no calor úmido desta cidade, suando por todos os poros para mais um de meus estafantes, tensos ensaios.

Durante os silêncios da pauta, olho nos olhos de minha gata enquanto conto os compassos em que meus ávidos dedos expectantes permanecem. A gata me corresponde apreensiva como se compartilhasse da aflição, solidária, sapiente há muito de que mais nada pode fazer exceto acompanhar-me pelo furta-cor de seus olhos variantes e reflexos não só das inflexões da luz; da harmonia, principalmente. É o que sinto.

De repente, estou louco, ou demais cansado, idênticos outros olhos, sei lá se felinos, me observam pela janela. Somem, reaparecem, somem, perco a concentração.

Pausa, um refresco de guaraná e mais café, quero ser todo nervos, ágeis, drogar me de cafeína é necessário.

Recomeço concentrado e sinto que me saí bem, preciso, numa das passagens mais difíceis e, enquanto a repito, sinto que os mesmos olhos novamente me fitam, sorte que sobre um admirado sorriso ao qual correspondo feliz como se aprovado, aplaudido. E ali permanecem até quase ao término da seqüência para não serem, depois dela, vistos.

Hora de novas hidratações e drogas. Agora sou eu quem sente falta, busco o olhar que me inspirou, quem sabe dos segredos da interpretação?

Sumiram.

E uma extensa pauta me espera.

Era uma menina.

Na idade que se faz indefinível à mera vista, ora parece mais nova, criança, desajeitos infantis; ora mocinha, outros trejeitos, a família se mudara há pouco para a casa vizinha e, logo vim a saber, ela bisbilhotava a casa do estranho pianista em busca de uma bola de couro, branca e leve, de voleibol, que havia caído em meu quintal.

Toma, disse ao devolvê-la, olhando-lhe fixo nos lindos, esquisitos olhos de gata sobre o mesmo já visto sorriso que então me pareceu também esquisito. É que enquanto sorria, seus olhos inquiriam, duvidavam, sugeriam, desafiantes intrigavam, instigavam indefiníveis.

Outro dia, uma tardinha, enquanto faço na varanda uma pausa mais longa, a jarra do refresco de guaraná sobre a mesa, vejo-a na rua a brincar com outras meninas, a mesma bola, os mesmos olhos e sorriso, só que na testa, às vezes, um franzir descombinado.

O jogo acabou, com a bola sob o braço e a cara quase fechada, quase a afugentar o sorriso, ela passará bem próxima e ouvirá de mim o convite, natural e avidamente aceito, a jarra se foi num átimo. Me disponho a trazer outra, mas ela se vai, tomar um banho, me diz, passando as mãos sobre o corpo a mostrar-se excessivamente suada. Antes rápida e logo lentamente, suas mãos deslizam sobre a pele e os cabelos, seus olhos, o sorriso, o diminuído franzir da testa a permitirem, como as minhas semifusas, novas, renovadas, surpreendentes interpretações.

Vivi esse curto e intenso período sob as ameaças de silêncios e semifusas.

E ainda outras.

Percebi, num dia qualquer, que alguém, além da velha gata, respirava mais forte que esta entre os difíceis compassos. Era ela, sentada há poucos metros, quieta e atenta, talvez admirada. Nem sei como entrou. E, assim que terminei o movimento, ouvi de suas pequenas mãos o ruído das palmas e um aproximar-se respeitoso, os mesmos olhos feitos grandes vêem as teclas do piano como se não pudessem acreditar que fossem elas capazes de tanta sonoridade. Pode tocar, eu disse, ela pareceu não acreditar. Insisti até que seu dedo indicador bateu sobre a tecla mais próxima. Voltei a insistir e ela arriscou-se a três, quatro toques.

A fiz sentar-se, ajustei-lhe cuidadoso, carinhosamente a banqueta, deixei-lhe o piano entregue a seus caprichos exploratórios enquanto fui buscar outro copo para ela. Tocava tímida e delicadamente cada tecla, ouvindo-lhe atenta o som e as combinações. Sentei a seu lado e, a cada novo toque de seus dedos finos, eu acrescentava novas notas que se arranjavam às suas dando-lhe ora a impressão de que tocávamos a quatro mãos, ora de que eu a seguia, como segue o executante a batuta do maestro. Maestrina, no caso.

Sua excitação era tamanha, explodia na respiração entrecortada, tantas vezes suspensa, enquanto acelera o ritmo, procura nas teclas as notas que correspondam às minhas, tenta suas próprias harmonias.

Sim, ela tinha um bom ouvido, quiçá absoluto, levava jeito. Resolvi ensinar-lhe.

O que ficou para depois do concerto.

Arranjei ingressos para ela e seus pais e interpretei a difícil peça que me competia a pensar que aqueles olhos de gata me olhavam impressionados, confiantes; os senti, podem crer, na nuca, onde sempre sentira que se concentravam os olhos de minha outra gata, a velhinha e doméstica.

Cabe o parêntesis, as duas se afeiçoaram no período em que à humana ensinei tocar piano, esta pródiga em afagos à outra antes e depois das lições. Afagos bem-vindos como o demonstra um miar agradecido e manhoso. Pobre gata, tão linda em suas três cores, tão meiga e expressiva, dá sinais inequívocos da idade avançada, preciso acostumar-me a idéia de que em pouco tempo me deixará novamente só.

Mas não o fez antes da gata menina.

Esta, tão logo virada mocinha, abandonou o piano, emprestou seus privilegiados, e agora mais afinados, ouvidos ao violão; arranjou um namorado entre essa centena de soldadinhos loiros que infestam a cidade desde a ocupação. Me diz agora que chegou a tocar guitarra num desse clubes exclusivos para estrangeiros.

E que dinheiro e sucesso não lhe faltaram; pelo jeito nem amores pois descobriu-se grávida há poucas semanas. E o soldado, alegando que há tantos como ele, não mais quis vê-la. Ela soluça ao perguntar-me o que deve fazer, empalidece ao prometer vingança, me pede ajuda em ambos os casos. Quanto ao primeiro, posso indicar-lhe a um bom conservatório em São Paulo, recomendar-lhe a uma bolsa de estudos, ainda tenho algum prestígio e amigos lá no Brasil, longe dos pais e de outras pressões você pode melhor decidir sobre sua vida.

E quanto ao soldado, ela me pergunta. Nada posso fazer nem sugerir, respondo secamente, para, em seguida, trair-me em mágoas, você sumiu, só agora, no desespero, se lembra de mim, deveria ter tido mais cuidado, já não é criança.

Uma lágrima lhe cai dos olhos.

Estes ainda avermelhados, a expressão, porém, diferencia-se em ira, agressão, você não tem o direito de me julgar, também é culpado por isso.

Está mais calma, segura no dia em que lhe entrego a carta de recomendações, os nomes e endereços das pessoas que contatei, a resposta de um órgão de financiamento garantindo a bolsa, me sorri agradecida, toma minhas mãos entre as suas, aperta e acaricia, como antigamente.

Quando você parte, pergunto. Logo, foi a resposta, só preciso acertar as contas com aquele cafajeste. O que pretende fazer? Janto com ele hoje, o resto é segredo, um a mais entre os tantos que guardamos.

Apenas um projeto de vingança a diluir-se num jantar de despedida, choroso, humilhante, penso aborrecido ou, quem sabe, se não numa cama, seu corpo febril, as cordas retesadas, a proporcionar ao macho um último e especialíssimo concerto, sinto um aperto no peito, profunda decepção, dor. Mas só consegui dizer-lhe cuidado, melhor esquecer, não vá se complicar agora.

Foi a última vez que a vi, nem sei onde está, não escreve nem telefona. O soldado também sumiu, disso fico sabendo no momento em que dois oficiais do exército de ocupação me interrogam, seus cães farejadores focinham meu cuidado jardim, ouço ordens de cavar um dos canteiros.

Esses arrogantes senhores não respeitam sequer túmulos de gatos.


“Outras Palavras”, programa de literatura de Levi Bucalem Ferrari na Rádio Cultura AM.
Conto publicado na coletânea  III Prêmio Escriba de Contos (Piracicaba, Prefeitura Municipal – Secretaria de Ação Cultural, 2001) e no livro O Inimigo de Levi Bucalem Ferrari (São Paulo, Ed. Limiar, 2003).

Sobre levi

Poeta, ficcionista, ensaísta, sociólogo e professor universitário. Presidente da UBE - União Brasileira de Escritores, diretor do Sindicato dos Sociólogos de S. Paulo e Presidente do IPSO - Instituto de Pesquisas e Projetos Sociais e Tecnológicos. Integra a Coordenação do Movimento Humanismo e Democracia e o Conselho de Redação da Revista Novos Rumos. Foi Presidente da ASESP – Associação dos Sociólogos do Estado de São Paulo, Administrador Regional de Santana -Tucuruvi (SP). Coordenador da Proteção dos Recursos Naturais do Estado de São Paulo. Livros Publicados: Burocratas e Burocracias (ensaio, SP, Ed. Semente, 1981); Ônibus 307 – Jardim Paraíso (poesia, SP, Muro das Artes, 1983); A Portovelhaca e as Outras (poesia, SP, Paubrasil, 1984). O Seqüestro do Senhor Empresário (romance, SP, Publisher/Limiar, 1998); O Inimigo (contos, Limiar – SP, 2003). Recebeu o Prêmio de Revelação de Autor da APCA – Associação Paulista de Críticos de Arte e outros. Publicou diversos artigos, contos, crônicas, poemas e resenhas literárias em coletâneas, jornais e revistas.
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4 Responses to OLHOS DE GATA

  1. Panther disse:

    I didn’t understand the concluding part of your article, could you please explain it more?

  2. levi disse:

    Dear Panther,
    Olhos de gata é um conto, não um artigo. Infelizmente, não posso explicar aqui para você pois prejudicaria outros futuros leitores. Por favor, rogo-lhe que leia atentamente mais uma vez e você certamente entenderá o final.
    Abraços
    Levi

  3. HoXsRuL disse:

    Do you have copy writer for so good articles? If so please give me contacts, because this really rocks! :)

  4. levi disse:

    Please, You mean copy writer or copy rights? Copy rights belongs to me and we can talk about it. I don´t know the meaning of copy writer in the case.
    Att.
    Levi

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