JUCA PATO – UM TROFÉU ÍMPAR

O Troféu Juca Pato concedido ao Intelectual do Ano é único em seu gênero em nosso país, a começar por sua principal característica, o processo eleitoral a que se submete o candidato, eleito, enfim, pelo voto direto de todos os escritores brasileiros que queiram participar. Nunca teve sua lisura contestada, nem pode, pelo que foi dito, sofrer qualquer acusação de compadrio ou protecionismo.

É também ímpar porque se destina a autor que tenha publicado naquele ano “livro que suscite debate de idéias”; eis, portanto, o embrião de sua vocação social, política e quase sempre polêmica, conforme nos faz notar Fábio Lucas em artigo nesta edição sobre a história e o caráter do prêmio.

Origem Troféu Juca Pato

Criado em 1962, por proposta de Marcos Rey, um dos fundadores e então vice-presidente da UBE, o concurso é realizado anualmente em parceria com a Folha de São Paulo. Marcos Rey, juntamente com seu irmão Mário Donato, ao sugerirem a estatueta que representa o prêmio acabaram por conferir ao prêmio uma terceira singularidade: a perenização de Juca da Silva Pato, personagem criada pelo jornalista Léllis Vieira e celebrizada em 1925 na caricatura feita pelo ilustrador Benedito Carneiro Bastos Barreto, o popular Belmonte.

Homem simples, de pavio curto, porta-voz de algumas camadas médias da sociedade paulistana, irritava-se com os desmandos, a prepotência, o arbítrio dos governantes e poderosos em geral. Sob o lema “Poderia ser pior”, desfilava seus reclamos na coluna “Desabafos do Juca Pato” na então “Folha da Manhã”.

Desde a primeira edição o Prêmio Intelectual do Ano visou a consagrar autores de estudos e reflexões sobre o país e quase nunca o conjunto dos eleitores errou. E, nos raros, raríssimos casos em que isso possa ter ocorrido não foi porque o Juca Pato mudou; mudou de opinião o premiado.

Marcos Rey seria finalmente laureado trinta e quatro anos depois da criação do Prêmio e sob muita pressão de seus amigos e admiradores pois não queria, como criador, candidatar-se. Ao saudá-lo na ocasião, Fábio Lucas, notaria “o parentesco da prosa de ficção do romancista com os traços caricaturescos de Belmonte. Traços de ironia e de crítica social”.

Ainda para Marcos Rey em 1964, “a imagem do Juca, mesmo sem legendas, amordaçada, imobilizada em bronze, é presença incômoda para a ditadura”. Coerentemente, o primeiro agraciado, Santiago Dantas, afirmou: “O nosso esforço se legitima na medida em que formos capazes de lutar contra a opressão, que muda de formas ao longo da história”.

E será por esta senda de reflexão sobre o país e seus problemas; sobre nossa cultura e soberania e tudo que as ameaça; será sempre por esse caminho que o Prêmio Intelectual do Ano irá se firmar como dos mais valorosos em nosso país, destinado que é a exaltar os expoentes da cultura brasileira, mulheres e homens que mais contribuem para seu enriquecimento, para o nosso autoconhecimento e auto-estima, para a reflexão sobre nós mesmos como nação.

A relação dos premiados haverá de confirmar o que estamos dizendo.

Alberto da Costa e Silva

E é nesse quadro que se insere a pessoa e a obra de Alberto da Costa e Silva, o Intelectual do Ano de 2003. O diplomata, poeta, crítico, historiador, pesquisador e membro da Academia Brasileira de Letras, da qual foi Presidente, fez publicar o livro Um rio chamado Atlântico: A África no Brasil e o Brasil na África. Nele, o autor faz com que nossos olhos focalizem a outra margem de nós mesmos, seja do ponto de vista étnico, como cultural e sócio-econômico. Jacob Gorender, outro caro Intelectual do Ano já nos afirmara em entrevista que “somos também africanos”. Afinal, continua o historiador, “do total de dez milhões de africanos que vieram para as Américas, quatro milhões se destinaram ao Brasil”.

A propósito, recordo-me que, durante o regime militar, depois de preso duas vezes, fugi para a Inglaterra onde, rapidamente, me enjoei da insossa cozinha britânica. Debalde procurei alternativas entre restaurantes italianos, portugueses e outros, encontrando em todos o mesmo padronizado sabor. Finalmente, alguém me indicou o Centro Cultural Africano. Que delícia, que maravilha o reencontro com o meu atavismo gastronômico! Sabendo que um brasileiro, aliás, mais um se esbaldara com sua comida, a cozinheira apresentou-se orgulhosa: Eunice, brasileira… não falava português. Tanto tempo depois, graças à leitura de Costa e Silva, compreendo aquela aparente contradição. Há inúmeras “colônias” e “tribos” de brasileiros na África, que assim se auto-identificam por longínquos laços de parentesco, laços hoje mais culturais que étnicos.

Mais nos ensina o Intelectual do Ano de 2003: que as potências européias, Inglaterra à frente, sempre haveriam de opor obstáculos à integração entre o Brasil e a África. Seus interesses imperiais, tanto daquela quanto desta margem do Rio Atlântico, poderiam correr riscos caso cada se perenizassem as pontes que se delinearam e funcionaram por largos períodos de nossas histórias. Ver a África com as lentes de Costa e Silva é vermos um pedaço de nós mesmos, partes separadas uma da outra pela violência típica dos colonizadores tanto da Idade Moderna quanto da Contemporânea. Por outro lado, são irmãos que se reconhecem e clamam pelo mútuo reconhecimento dessa fraternidade,, para a retomada dos laços que haverão de construir a enorme Nação Afro-brasileira, assim como, com os olhos voltados para nossos outros vizinhos, os hispano-americanos, haveremos de construir a grande Nação Sul Americana.

Para tanto, é preciso acenar a ambos com firmeza, sem dubiedades, tal como o filho acena ao pai nesses versos de Alberto da Costa e Silva:

A mão do pai sobre o papel desenha,
Quase num só traço, o menino a cavalo.
Sai de sua mão a mão com que lhe aceno,
E vai sobre o papel o menino a cavalo.

E foi Drummond quem sentenciou que o poema se avalia por seus desdobramentos.


Artigo publicado no site Movimento Humanista e Democracia, em 2003.

Sobre levi

Poeta, ficcionista, ensaísta, sociólogo e professor universitário. Presidente da UBE - União Brasileira de Escritores, diretor do Sindicato dos Sociólogos de S. Paulo e Presidente do IPSO - Instituto de Pesquisas e Projetos Sociais e Tecnológicos. Integra a Coordenação do Movimento Humanismo e Democracia e o Conselho de Redação da Revista Novos Rumos. Foi Presidente da ASESP – Associação dos Sociólogos do Estado de São Paulo, Administrador Regional de Santana -Tucuruvi (SP). Coordenador da Proteção dos Recursos Naturais do Estado de São Paulo. Livros Publicados: Burocratas e Burocracias (ensaio, SP, Ed. Semente, 1981); Ônibus 307 – Jardim Paraíso (poesia, SP, Muro das Artes, 1983); A Portovelhaca e as Outras (poesia, SP, Paubrasil, 1984). O Seqüestro do Senhor Empresário (romance, SP, Publisher/Limiar, 1998); O Inimigo (contos, Limiar – SP, 2003). Recebeu o Prêmio de Revelação de Autor da APCA – Associação Paulista de Críticos de Arte e outros. Publicou diversos artigos, contos, crônicas, poemas e resenhas literárias em coletâneas, jornais e revistas.
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