REVOLUÇÃO TECNOLÓGICA E ESTADO

Alguns documentos da ONU que circularam na Conferência Mundial de Direitos Humanos (Viena, junho de 1993) registram um novo fenômeno na economia mundial: apesar do crescimento acelerado de muitos países, a taxa de emprego está cada vez menor, aumentando a perspectiva de tensões social e política. Este fenômeno, batizado de “crescimento sem emprego”, tem provocado pânico nos países industrializados. A Europa possui hoje 22 milhões de desempregados, sendo que mais da metade deles não encontra emprego há mais de um ano. Entre 1960 e 1987, França, Alemanha e Inglaterra duplicaram suas economias, mas reduziram as taxas de emprego. Ainda segundo a ONU, nos países mais pobres, este tipo de desemprego assume aspectos devastadores. No mundo, há cerca de 700 milhões de adultos desempregados ou subempregados. E esse número está aumentando rapidamente, mesmo nos países que retomam o crescimento.

O fato é que estas constatações derrubam a crença segundo a qual crescimento é sinônimo de emprego, e este, de bem-estar social. Deixando de lado a última afirmação, a qual já se provou falsa, uma vez que em alguns países, entre os quais o Brasil, não ocorreu a distribuição dos benefícios do crescimento, resta entender a primeira. Esta exige explicações um pouco mais elaboradas.

Revolução tecnológica

A principal premissa do materialismo histórico de Karl Marx é a de que evoluções significativas das forças produtivas, ou seja, da capacidade de produção de uma determinada sociedade, provocam alterações nas relações de produção; essas, entendidas como a forma pela qual os diversos componentes do processo produtivo se relacionam entre si. Tais alterações repercutem nos costumes e valores sociais e nas instituições jurídico-políticas.

Por mais que tal assertiva tenha se prestado a interpretações excessivamente “mecanicistas” não há como negar-lhe congruência histórica. Mesmo quando se considera que as instituições de natureza política, cultural e outras, possuem características próprias e desenvolvimento autônomo, suas interações com a macroeconomia continuam sendo fontes de conflitos e mudanças.

Ora, hoje se percebe uma expansão violenta de conhecimentos científicos e tecnológicos aplicados à produção, o que ocorre principalmente nos países de economia mais avançada. A biotecnologia, a informática e a robótica, entre outras ciências, ao mesmo tempo que ampliam a capacidade produtiva, tornam-na menos dependente do esforço físico humano. Daí resultam alterações tão significativas nas relações de produção, a ponto de configurar-se um processo revolucionário do modo de produção capitalista. Processo que pode resultar tanto em crises e mudanças radicais nesse modo de produção, e em seus ajustes institucionais, quanto no delineamento de um novo modo de produção.

De fato, a fábrica do futuro terá alguns técnicos e cientistas no lugar de centenas de operários. E produzirá muito mais. Por um lado, isto fará a humanidade vislumbrar, pela primeira vez em sua história, a superação da maldição bíblica do trabalho. Por outro, acarretará desemprego em massa. Os conflitos deslocam-se da relação capital-trabalho e concentram-se, num primeiro momento, na questão de ficar dentro ou fora do processo produtivo. Logo perceber-se-á a inutilidade dessa demanda. O desemprego é estrutural e, portanto, definitivo. Em outras palavras, o novo modo de produção dispensa a força de trabalho como entendida até agora, ou seja, como esforço físico, especializado ou não. E se o novo modo de produção pressupõe um papel minimizado da força de trabalho, com a substituição desta pelo conhecimento, ao mesmo tempo em que a presença do fator capital se amplia e se sofistica, tem-se uma diminuição drástica do poder de barganha da classe trabalhadora no conflito entre capital e trabalho pela redistribuição da riqueza excedente. Assim, a distribuição do excedente não se dará de acordo com a correlação de forças representativas dos fatores de produção (capital e trabalho), mas sim será fruto de ajustes institucionais consolidados em alguma nova forma de Estado. Ou não haverá redistribuição alguma.

A maioria das especializações atuais tornar-se-á rapidamente obsoleta e o próprio conceito de local coletivo de trabalho estará superado com o incremento das comunicações e da informática. Isso implica um desafio para os sindicatos. Se, na defesa do emprego, pouco ou nada produtivo resistirem às mudanças, correm o risco de virar história. A sociedade não terá condições de arcar com formas de produção superadas, economicamente não-competitivas. Está claro que o trabalho improdutivo, além de insalubre sob vários ângulos, torna-se oneroso. O ascensorista de elevador automático, por exemplo, custará menos para si, para a empresa e para a sociedade se ficar em casa vivendo com uma renda mínima socialmente estipulada, exercendo seu direito ao ócio ou preparando-se, através de estudos, para o exercício de funções produtivas.

Paraíso ou barbárie

A imensa e crescente capacidade produtiva fornecida pela ciência em nossos dias, e cujos limites encontram-se apenas na utilização racional dos recursos naturais, apresenta duas grandes opções à humanidade. A primeira é a de alcançarmos gradualmente uma espécie de paraíso terrestre, com a diminuição progressiva da jornada de trabalho até formas mais avançadas de uma divisão voluntária, ou quase, dessa atividade humana. Nesta hipótese, como dissemos, a natureza é o limite, mas aqui também pode-se supor que saberemos encontrar novos tipos de recursos energéticos, menos poluentes, bem como a substituição de diversas matérias-primas por similares artificiais, além de formas de recuperação do meio ambiente.

A segunda opção é o inverso da primeira: bilhões de desempregados – nações inteiras em muitos casos – dentro e fora do primeiro mundo, ainda que neste, confinados em guetos até quando for possível; exclusão de imensas maiorias condenadas a uma economia de subsistência num mundo onde se esgotam as fronteiras agrícolas; o aumento do banditismo, da fabricação e do tráfico de drogas, que poderão ser a única fonte de subsistência e, portanto, a atividade principal de muitos países, fazendo surgir governos paralelos até a fragmentação de muitos dos atuais Estados nacionais; e o ressurgimento de rivalidades étnicas, baseadas em preconceitos e intolerâncias de todo tipo.

A prevalecer a lógica hoje predominante na economia mundial, este último cenário é o mais provável, uma vez que os Estados neoliberais não prevêem a absorção de desempregados como cidadãos. Os acontecimentos de Los Angeles, a xenofobia européia, as Somálias, os Perus, as Colômbias, os morros cariocas e a periferia paulista são evidências mais que suficientes.

Opções para o Brasil

Os países que baseiam sua produção na exploração de mão-de-obra barata e pouco especializada, em mercados cativos e na exportação de determinados recursos naturais, como é o caso do Brasil, estarão fora da competição, com bens a custos finais comparativos crescentes, e o risco de involução à economia de subsistência. Recursos naturais esgotam-se e, além disso, podem ser substituídos. Exportar mão-de-obra é outra ilusão passageira. Apenas ínfima parcela poderá ser absorvida. Na Alemanha de hoje, os neonazistas já definem os limites.

Nesse quadro de grandes mudanças, insere-se a crise brasileira, agudizada pela recessão que, ao invés de potencializar nossa capacidade produtiva, aproxima-nos mais rapidamente do pior dos cenários. A solução neoliberal “modernizante”, aparentemente hegemônica, e tão cultivada pelos meios de comunicação, propõe o Estado mínimo com privatizações a qualquer preço, e a conseqüente concentração da riqueza nas mãos de pequenos grupos associados ao capital internacional, cujo interesse em investir é visivelmente escasso. Sem investimentos, essa opção só nos levaria a um imenso “bazar” de bugigangas. No outro extremo das alternativas está o que podemos chamar de posição “estamental”, nossa velha conhecida, praticada principalmente por empresários acomodados, pouco afeitos à competição, ao investimento e à pesquisa. Esses encontram ressonância em segmentos burocráticos do Estado e setores mais corporativos da sociedade, num círculo vicioso de incompetência, conivência e corrupção, mantido graças à imensa capacidade arrecadadora do Estado patrimonial, ao mercado cativo, às leis protecionistas, aos “lobbies” etc.

A solução neoliberal garantirá, na melhor das hipóteses, apenas maior concentração de riquezas, mantendo as massas populares no desemprego e na miséria. A prática estamental é a opção pelo atraso, pela obsolescência do sistema produtivo e o conseqüente isolamento do país em relação às conquistas proporcionadas pela revolução tecnológica.

Nem uma coisa, nem outra. Como nos países mais avançados, teremos que desenvolver e absorver as novas técnicas de produção, ao mesmo tempo que devemos procurar soluções institucionais desenvolvidas de redistribuição da riqueza assim gerada. Isso passa pela redefinição da estrutura e do papel do Estado, bem como pela valoração social de democracia e cidadania.

Papel do Estado

Quanto ao Estado, nenhuma desculpa poderá ser dada à ineficácia de muitos serviços que presta. Não poderá ser o protetor manipulável de elites ociosas, nem das inúteis corporações que abriga. Principalmente, não terá condições de privatizar lucros e socializar prejuízos, o que tem sido a principal causa de nosso atraso em todos os sentidos. Ao contrário, o Estado democrático deverá ser capaz de redistribuir a riqueza, de assegurar os direitos do cidadão, e de estimular o processo de desenvolvimento dentro dos requisitos da revolução tecnológica.

O Estado verdadeiramente moderno é causa e efeito da maior valoração social dos conceitos de democracia e cidadania. As novas relações sociais farão da democracia reinvidicação social e contra-ponto à barbárie, uma vez que, no “modo de produção tecnológico”, somente um Estado democrático pode assegurar à população seus direitos, seja porque ela permanece como mão-de-obra em disponibilidade, como sugere André Gorz, ou seja simplesmente porque direitos de cidadãos têm que ser garantidos pelo Estado de alguma maneira, como já propunha Norberto Bobbio.

A preparação da sempre bem-vinda revolução tecnológica é, portanto, também, desse ponto de vista, um desafio à engenharia institucional, aos partidos políticos e a todos os cidadãos que rejeitam a exclusão social, o atraso e a barbárie.


Artigo publicado no livro “A Revolução Tecnológica e os Novos Paradigmas da Sociedade”, IPSO, 1994.

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