Joaquim Maria Botelho
Euclides da Cunha emergiu de Canudos como São Paulo de Damasco. Um homem com ideias renovadas.
Quando foi convidado por Júlio Mesquita, dono do jornal O Estado de S. Paulo, para fazer a cobertura jornalística da guerra de Canudos, Euclides condenava Canudos e sua gente. Engenheiro, formado no cientificismo que regia o Colégio Militar, partilhava do julgamento da gente instruída de sua época. Estava convicto de que Antônio Conselheiro era um falso messias, canalha e impostor. E Canudos, no sertão da Bahia, onde o beato se recolhera com seus seguidores, era um covil de assassinos.
Euclides foi se convertendo à medida que escrevia. Aos poucos sucumbiu à verdade e deixou de lado o cientificismo e o determinismo que explicava gente como Antônio Conselheiro e seus jagunços. Machado de Assis, por exemplo, a bordo do pensamento dominante, considerava o sertanejo um ser incapaz de atingir a civilização. Euclides sintetizaria a sua contraposição a essa ideia numa frase: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte.”
Seguidor da doutrina de Augusto Comte, Euclides seguiu para o local das batalhas como cientista. Principiou a enviar artigos para o jornal, antes de testemunhar a luta, durante um período alongado em que permaneceu em Salvador, aguardando translado. Seu texto denunciava o engenheiro ocupado com a precisão técnica, com o rigor científico. Tinha um projeto historiográfico e para isso valia-se do discurso científico, positivista e europeu. Usava desmedidamente dados da geografia, da meteorologia, da hidráulica, da botânica e da engenharia. Seu interlocutor era a ciência.
Mas, como literato, tinha um projeto estético. Seu texto denuncia o autor ocupado com a precisão da língua, dominando a técnica narrativa, a poética e a humanidade. Mas não perdia de vista o que Machado de Assis pontificava, no artigo Instinto de Nacionalidade, publicado em 1873: “O que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço.”
Gênero literário ou jornalístico?
Do ponto de vista da teoria da literatura, “Os Sertões” não é um romance histórico, dado que não narra um episódio histórico emprestando feição literária de personagem aos protagonistas. O registro é fundamentado, científico – pelo menos tanto que se podia ser naquele momento histórico-filosófico-literário do Brasil.
“Os Sertões” tampouco é a história romanceada, porque não acrescenta à história episódios romanescos para torná-la mais agradável à leitura.
Encaixa-se, perfeitamente, na categoria de épico. Tem narrador, tem urdidura organizada e lógica (neste caso, real), tem personagens (neste caso, históricas), tem espaço definido e tempo delimitado. Aliás, é isto mesmo que escreveu Araripe Júnior, crítico respeitadíssimo à época do lançamento do livro: “Vós sabeis retratar ao vivo a natureza física, dando intensidade às notas, sem prejudicar a veracidade dos fatos, a qualidade dos fenômenos. É o grande escolho da arte descritiva: exatidão e relevo, naturalismo e brilho, consistência e colorido, poesia e verdade.”
Tendo essas qualidades, seria, então, “Os Sertões”, uma reportagem?
Analisemos. É uma obra original, porque traz achados importantes para a sociedade. É uma obra oportuna (menos para o Exército republicano, que queria mesmo era esquecer o fracasso das expedições que durante um ano investiram contra Canudos). É factual, documentada. E, além disso, demonstra independência de consciência. Conceitualmente, tudo isto se refere ao trabalho jornalístico e está presente em “Os Sertões”.
Além disso, o texto obedece aos paradigmas do jornalismo: o quê/quem, quando, onde, como e por que.
É preciso lembrar que a retórica do jornalismo, à época, era uma retórica literária. Ainda não havia sido incorporada ao jornalismo mundial a técnica da objetividade e da imparcialidade que os Estados Unidos exportariam para o mundo depois da Segunda Guerra Mundial. Até aqui, nenhum conflito entre literatura e jornalismo, no texto de “Os Sertões”, apesar da grandiloqüência.
Mas, na questão programática, o papel do repórter está bem claro na obra. Nas “Notas à segunda edição”, Euclides da Cunha encerra com uma frase do historiador ateniense Tucídides, exibindo o seu reposicionamento.
Notas à segunda edição
“Não tive o intuito de defender os sertanejos, porque este livro não é um livro de defesa; é, infelizmente, de ataque.
Ataque franco e, devo dizê-lo, involuntário. Nesse investir, aparentemente desafiador, com os singularíssimos civilizados que nos sertões, diante de semibárbaros, estadearam tão lastimáveis selvatiguezas, obedeci ao rigor incoercível da verdade. Ninguém o negará.
E se não temesse envaidar-me em paralelo que não mereço, gravaria na primeira página a frase nobremente sincera de Tucídides, ao escrever a história da guerra do Peloponeso – porque eu também embora sem a mesma visão aquilina, escrevi
“SEM DAR CRÉDITO ÀS PRIMEIRAS TESTEMUNHAS QUE ENCONTREI, NEM ÀS MINHAS PRÓPRIAS IMPRESSÕES, MAS NARRANDO APENAS OS ACONTECIMENTOS DE QUE FUI ESPECTADOR OU SOBRE OS QUAIS TIVE INFORMAÇÕES SEGURAS.”
Testemunho
Uma vez em Canudos, Euclides ouviu seguidores de Conselheiro. Na narrativa a seguir (trecho de reportagem publicada no jornal o Estado de S. Paulo em agosto de 1897), podemos ler, ao mesmo tempo uma compreensão desvelada da situação e um depoimento do fazer jornalístico que norteava seus artigos.
Afirma o pequeno jagunço que o velho vigário de Cumbe ali aparecia, de quinze em quinze dias.
(…)
Terminamos o longo interrogatório inquirindo acerca dos milagres do Conselheiro. Não os conhece, não os viu nunca, nunca ouviu dizer que ele fazia milagres. E ao replicar um dos circunstantes que aquele declarava que o jagunço morto em combate ressuscitaria – negou ainda.
– Mas o que promete afinal ele anos que morrem?
A resposta foi absolutamente inesperada:
– Salvar a alma.
Estas revelações feitas diante de muitas testemunhas têm para mim um valor inestimável; não mentem, não sofismam e não iludem, naquela idade, as almas ingênuas dos rudes filhos do sertão.
Aí está. Emerge um novo Euclides.
Libelo
Antes de citar um trecho da “Nota preliminar”, lembremos que o jornalismo tem alguns conceitos que categorizam a notícia e a reportagem. São eles: imparcialidade, atualidade, exemplaridade e proximidade.
A civilização avançará nos sertões impelida por essa implacável “força motriz da História” que Gumplowicz, maior do que Hobbes, lobrigou, num lance genial, no esmagamento inevitável das raças fracas pelas raças fortes.
A campanha de Canudos tem por isto a significação inegável de um primeiro assalto, em luta talvez longa. Nem enfraquece o asserto o termo-la realizado nós filhos do mesmo solo, porque, etnologicamente indefinidos, sem tradições nacionais uniformes, vivendo parasitariamente à beira do Atlântico, dos princípios civilizadores elaborados na Europa, e armados pela indústria alemã – tivemos na ação um papel singular de mercenários inconscientes. Além disto, mal unidos àqueles extraordinários patrícios pelo solo em parte desconhecido, deles de todo nos separa uma coordenada histórica – o tempo.
Aquela campanha lembra um refluxo para o passado.
E foi, na significação integral da palavra, um crime.
Denunciemo-lo.
Euclides da Cunha denunciava a existência de dois Brasis, muito antes de Jacques Lambert ou Gilberto Freyre. Um libelo, como fizera Émile Zola no caso Dreyfus. Isto é mais jornalismo do que literatura. E confere ao livro funções sociais que ultrapassam as suas qualidades literárias ou científicas e que transcendem tanto o projeto historiográfico quanto o projeto estético.
Para a crítica e para os intelectuais, especialmente José Veríssimo, Sílvio Romero, Cassiano Ricardo, Gilberto Freyre e Coelho Neto, talvez a mais importante contribuição de “Os Sertões” tenha sido a tentativa de estabelecer a identidade nacional. O livro tem sido entendido como o primeiro épico da nacionalidade brasileira.
Como num ato de contrição, Euclides escreve, no capítulo V de “Os Sertões”:
“Vivendo quatrocentos anos no litoral vastíssimo, em que palejam reflexos da vida civilizada, tivemos de improviso, como herança inesperada, a República. Ascendemos, de chofre, arrebatados no caudal dos ideais modernos, deixando na penumbra secular em que jazem, no âmago do país, um terço da nossa gente. Iludidos por uma civilização de empréstimo; respingando, em faina cega de copistas, tudo o que de melhor existe nos códigos orgânicos de outras nações, tomamos, revolucionariamente, fugindo ao transigir mais ligeiro com as exigências da nossa própria nacionalidade, mais fundo o contraste entre o nosso modo de viver e o daqueles rudes patrícios mais estrangeiros nesta terra do que os imigrantes da Europa. Porque não no-los separa um mar, separam-no-los três séculos…”
No entanto, os efeitos sobre o leitor são resultantes mais da retórica do que dos fatos. Isto é literatura. Vamos ver um trecho de “A luta”:
Sem comando, cada um lutava a seu modo. Destacaram-se ainda diminutos grupos para queimarem as casas mais próximas ou travarem breves tiroteios. Outros, sem armas e feridos, principiaram a repassar o rio.
Era o desenlace.
Repentinamente, largando as últimas posições, os pelotões, de mistura, numa balbúrdia indefinível, sob a hipnose do pânico, enxurraram na corrente rasa das águas!
Repelindo-se; apisoando os malferidos, que tombavam; afastando rudemente os extenuados trôpegos; derrubando-os, afogando-os, os primeiros grupos bateram contra a margem direita. Aí, ansiando por vingá-la, agarrando-se às gramíneas escassas, especando-se nas armas, filando-se às pernas dos felizes que conseguiam vencê-las, se embaralham outra vez em congérie ruidosa. Era um fervilhar de corpos transudando vozear estrídulo, e discordante, e longo, dando a ilusão de alguma enchente repentina, em que o Vaza-Barris, engrossado, saltasse, de improviso, fora do leito, borbulhando, acachoando, estrugindo. . .
Vamos escandir os principais efeitos adjetivos, no trecho acima:
Sem comando
Diminutos grupos
Casas mais próximas
breves tiroteios
sem armas e feridos
Repentinamente
últimas posições
os pelotões, de mistura
balbúrdia indefinível,
enxurraram na corrente rasa das águas !
Malferidos
afastando rudemente
os extenuados trôpegos;
primeiros grupos
contra a margem direita
gramíneas escassas
felizes que conseguiam vencê-las
congérie ruidosa.
corpos transudando vozear estrídulo
enchente repentina
Vaza-Barris, engrossado
borbulhando, acachoando, estrugindo . . .
Em outro trecho de “A luta”, a narrativa também está eivada de efeitos adjetivos:
E foi uma debandada.
Oitocentos homens desapareciam em fuga, abandonando as espingardas; arriando as padiolas, em que se estorciam feridos: jogando fora as peças de equipamento; desarmando-se; desapertando os cinturões, para a carreira desafogada; e correndo, correndo ao acaso, correndo em grupos, em bandos erradios, correndo pelas estradas e pelas trilhas que as recortam, correndo para o recesso das caatingas, tontos, apavorados, sem chefes . . .
Entre os fardos atirados à beira do caminho ficara, logo ao desencadear-se o pânico – tristíssimo pormenor! – o cadáver do comandante. Não o defenderam. Não houve um breve simulacro de repulsa contra os inimigos, que não viam e adivinhavam no estrídulo dos gritos desafiadores e nos estampidos de um tiroteio irregular e escasso, como o de uma caçada. Aos primeiros tiros os batalhões diluíram-se.
Mesmo tomando-se o substantivo como a base da narrativa jornalística, o seu encadeamento em “Os Sertões” tem efeitos retóricos. Destacamos, a seguir, no trecho acima, os substantivos que o leitor poderá colocar em sequência de leitura – e verá o seu efeito narrativo.
Sem comando, cada um lutava a seu modo. Destacaram-se ainda diminutos grupos para queimarem as casas mais próximas ou travarem breves tiroteios. Outros, sem armas e feridos, principiaram a repassar o rio.
Era o desenlace.
Repentinamente, largando as últimas posições, os pelotões, de mistura, numa balbúrdia indefinível, sob a hipnose do pânico, enxurraram na corrente rasa das águas!
Repelindo-se; apisoando os malferidos, que tombavam; afastando rudemente os extenuados trôpegos; derrubando-os, afogando-os, os primeiros grupos bateram contra a margem direita. Aí, ansiando por vingá-la, agarrando-se às gramíneas escassas, especando-se nas armas, filando-se às pernas dos felizes que conseguiam vencê-las, se embaralham outra vez em congérie ruidosa. Era um fervilhar de corpos transudando vozear estrídulo, e discordante, e longo, dando a ilusão de alguma enchente repentina, em que o Vaza-Barris, engrossado, saltasse, de improviso, fora do leito, borbulhando, acachoando, estrugindo . . .
Para observar a confluência entre jornalismo e literatura, basta levar em consideração a matéria de cada um. Para o jornalismo, nesse trecho anterior, o que importa são os fatos. Para a literatura, nesse mesmo trecho anterior, o que importa são as possibilidades do fato.
Nas reportagens publicadas em O Estado de S. Paulo, Euclides da Cunha faz todos os relatos em 1ª pessoa. Mas quando decidiu publicar as suas anotações como livro, trabalho que realizou durante os três anos que levou para construir uma ponte sobre o rio, em São José do Rio Pardo, Euclides promoveu uma estilização de linguagem que evidencia a presença de um sujeito. Isto implica subjetividade, mais típica do lírico do que do jornalístico. Isto não prejudica o plano estético da obra, mas contraria o discurso anunciado de relato objetivo e fiel da história.
Neste quesito, “Os Sertões” é mais literatura do que jornalismo, embora não seja integralmente num uma coisa nem outra.
Outra consistência a observar é a questão do julgamento.
O jornalista não julga – o entrevistado sim; mas Euclides prefere não dar voz direta aos entrevistados em “Os Sertões”, por isso o narrador.
O literato de mérito abstém-se de julgar – quem pode fazê-lo é o personagem ou o narrador onisciente (este também um personagem).
O tempo em “Os Sertões”
Determinou-a incidente desvalioso.
Antônio Conselheiro adquirira em Juazeiro certa quantidade de madeiras, que não podiam fornecer-lhe as caatingas paupérrimas de Canudos. Contratara o negócio com um dos representantes da autoridade daquela cidade. Mas ao terminar o prazo ajustado para o recebimento do material, que se aplicaria no remate da igreja nova, não lho entregaram. Tudo denuncia que o distrato foi adrede feito, visando o rompimento anelado.
O principal representante da justiça do Juazeiro tinha velha dívida a saldar com o agitador sertanejo, desde a época em que, sendo juiz do Bom Conselho, fora coagido a abandonar precipitadamente a comarca, assaltada pelos adeptos daquele.
Aproveitou, por isto, a situação, que surgia a talho para a desafronta. Sabia que o adversário revidaria à provocação mais ligeira. De fato, ante a violação do trato aquele retrucou com a ameaça de uma investida sobre a bela povoação do S. Francisco: as madeiras seriam de lá arrebatadas, à força.
O caso passou em dias de outubro de 1896.
O espaço em “Os Sertões”
No início de cada capítulo, à guisa de sumário ou de índice, Euclides da Cunha insere uma sequência que funciona como manchetes de jornal. Veja o exemplo em “A Terra” (capítulo I):
Preliminares. A entrada do sertão. Terra ignota. Em caminho para Monte Santo. Primeiras impressões. Um sonho de geólogo.
São tópicos frasais. (Que em jornalismo recebem a denominação técnica de “lead”.)
Vejamos como um trecho do capítulo que ambienta o homem e ambienta a batalha.
É uma paragem impressionadora.
As condições estruturais da terra lá se vincularam à violência máxima dos agentes exteriores para o desenho de relevos estupendos. O regímen torrencial dos climas excessivos, sobrevindo, de súbito, depois das insolações demoradas, e embatendo naqueles pendores, expôs há muito, arrebatando-lhes para longe todos os elementos degradados, as séries mais antigas daqueles últimos rebentos das montanhas: todas as variedades cristalinas, e os quartzitos ásperos, e as filades e calcários, revezando-se ou entrelaçando-se, repontando duramente a cada passo, mal cobertos por uma flora tolhiça – dispondo-se em cenários em que ressalta predominante, o aspecto atormentado das paisagens.
Porque o que estas denunciam – no enterroado do chão, no desmantelo dos cerros quase desnudos, no contorcido dos leitos secos dos ribeirões efêmeros, no constrito das gargantas e no quase convulsivo de uma flora decídua embaralhada em esgalhos – é de algum modo o martírio da terra, brutalmente golpeada pelos elementos variáveis, distribuídos por todas as modalidades climáticas. De um lado a extrema secura dos ares, no estio, facilitando pela irradiação noturna a perda instantânea do calor absorvido pelas rochas expostas às soalheiras, impõe-lhes a alternativa de alturas e quedas termométricas repentinas: e daí um jogar de dilatações e contrações que as disjunge, abrindo-as segundo os planos de menor resistência. De outro, as chuvas que fecham, de improviso, os ciclos adurentes das secas, precipitam estas reações demoradas.
As forças que trabalham a terra atacam-na na contextura íntima e na superfície sem intervalos na ação demolidora, substituindo-se, com intercadência invariável, nas duas estações únicas da região.
Em outro trecho:
E o observador que seguindo este itinerário deixa as paragens em que se revezam, em contraste belíssimo, a amplitude dos gerais e o fastígio das montanhas, ao atingir aquele ponto estaca surpreendido…
Observe-se aí o leitor sendo convocado a participar. Pura técnica literária – veja-se A filosofia da composição, de Edgar Allan Poe.
Gente, matéria-prima do jornalismo e da literatura
Euclides traça um retrato do habitante dos sertões que arrancou de Araripe Júnior um parágrafo laudatório: “Terminada a descrição da terra, isto é, da região das secas, feita a sua história natural e social, o jagunço salta das páginas do livro como um fruto maduro da árvore que o gerou e desenvolveu.”
As observações de Euclides sobre o sertanejo constituem, de fato, mais uma análise social e antropológica. Vejamos um trecho:
O brasileiro, tipo abstrato que se procura, mesmo no caso favorável acima firmado, só pode surdir de um entrelaçamento consideravelmente complexo.
Teoricamente ele seria o pardo, para que convergem os cruzamentos do mulato, do curiboca e do cafuz.
Avaliando-se, porém, as condições históricas que têm atuado, diferentes nos diferentes tratos do território; as disparidades climáticas que nestes ocasionam reações diversas diversamente suportadas pelas raças constituintes; a maior ou menor densidade com que estas cruzaram nos vários pontos do país; e atendendo-se ainda à intrusão – pelas armas na quadra colonial e pelas imigrações em nossos dias – de outros povos, fato que por sua vez não foi e não é uniforme, vê-se bem que a realidade daquela formação é altamente duvidosa, senão absurda.
Recursos de estilo em “Os Sertões”
RITMO
Apenas a artilharia, na extrema retaguarda, seguia vagarosa e unida, solene quase, na marcha habitual de uma revista, em que parava de quando em quando para varrer a disparos as margens traiçoeiras; e prosseguindo depois, lentamente, rodando, inabordável, terrível…
A presença da métrica poética é clara nesse trecho. Pode ser declamado com a beleza da leitura dramática, porque há um ritmo poético que mescla por exemplo a redondilha e o decassílabo. Isto é literatura.
ANALOGIAS
Outro, o velho curiboca desfalecido que não vingara disparar a carabina sobre os soldados, parecia um desenterrado claudicante.
O rosto, onde o prognatismo se acentuara, desaparecia na lanugem espessa da barba, feito uma máscara amarrotada e imunda.
À luz crua dos dias sertanejos aqueles cerros, aspérrimos rebrilham, estonteadoramente – ofuscante, num irradiar ardentíssimo.
Nesse último trecho, não há um quê de Eça de Queiroz nessa “luz crua” e nesse “irradiar ardentíssimo”?
E note-se o efeito onomatopaico de raspagem, nos cerros aspérrimos que irradiam…
TOM
As notas das cornetas vibravam em cima desse tumulto, imperceptíveis, inúteis…
Por fim cessaram. Não tinham a quem chamar. A infantaria desaparecera…
Pela beira da estrada, viam-se apenas peças esparsas de equipamento, mochilas e espingardas, cinturões e sabres, jogados a esmo por ali fora, como coisas imprestáveis.
Inteiramente só, sem uma única ordenança, o coronel Tamarindo lançou-se desesperadamente, o cavalo a galope, pela estrada – agora deserta – como se procurasse conter ainda, pessoalmente, a vanguarda. E a artilharia ficou afinal inteiramente em abandono, antes de chegar ao Angico.
Os jagunços lançaram-se então sobre ela.
É praticamente o inteiro período construído em vogais abertas – notas de corneta.
SONORIDADE
Vaza-Barris escachoando (onomatopeia)
O povoado revivesveu (variedades prefixionais)
engrimponados nas pedras vacilantes (variedades verbais)
Transmontadas as serras, sob a linha fulgurante do trópico (outro aspecto verbal)
As assonâncias construídas, abaixo (especialmente pelo uso das sibilantes), imitam “um longo uivar de ventania forte”:
Projetis de toda a espécie, sibilos finos de Mannlicher e Mauser, zumbidos cheios e sonoros de Comblain, rechinos duros de trabucos, rijos como os de canhões-revólveres, transvoando a todos os pontos: sobre o âmbito das linhas; sobre as tendas próximas aos quartéis-generais; sobre todos os morros até ao colo abrigado da Favela, onde sesteavam cargueiros e feridos; sobre todas as trilhas; sobre o álveo longo e tortuoso do rio e sobre as depressões mais escondidas; resvalando com estrondo pela tolda de couro da alpendrada do hospital de sangue e despertando os enfermos retransidos de espanto.
Em outro trecho, as aliterações propiciadas pelas letras P e T, concertam a sinfonia da linguagem:
Dali descem, acachoantes, para o levante, tombando em catadupas ou saltando “travessões” sucessivos, todos os rios que do Jequitinhonha ao Doce procuram os terraços inferiores do planalto…
Fechemos este artigo.
Para isto, um corolário jornalístico-literário com que Euclides da Cunha encerrou o seu livro “Os Sertões”:
Fechemos este livro.
Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 mil soldados.
Joaquim Maria Botelho
Euclides da Cunha emergiu de Canudos como São Paulo de Damasco. Um homem com ideias renovadas.
Quando foi convidado por Júlio Mesquita, dono do jornal O Estado de S. Paulo, para fazer a cobertura jornalística da guerra de Canudos, Euclides condenava Canudos e sua gente. Engenheiro, formado no cientificismo que regia o Colégio Militar, partilhava do julgamento da gente instruída de sua época. Estava convicto de que Antônio Conselheiro era um falso messias, canalha e impostor. E Canudos, no sertão da Bahia, onde o beato se recolhera com seus seguidores, era um covil de assassinos.
Euclides foi se convertendo à medida que escrevia. Aos poucos sucumbiu à verdade e deixou de lado o cientificismo e o determinismo que explicava gente como Antônio Conselheiro e seus jagunços. Machado de Assis, por exemplo, a bordo do pensamento dominante, considerava o sertanejo um ser incapaz de atingir a civilização. Euclides sintetizaria a sua contraposição a essa ideia numa frase: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte.”
Seguidor da doutrina de Augusto Comte, Euclides seguiu para o local das batalhas como cientista. Principiou a enviar artigos para o jornal, antes de testemunhar a luta, durante um período alongado em que permaneceu em Salvador, aguardando translado. Seu texto denunciava o engenheiro ocupado com a precisão técnica, com o rigor científico. Tinha um projeto historiográfico e para isso valia-se do discurso científico, positivista e europeu. Usava desmedidamente dados da geografia, da meteorologia, da hidráulica, da botânica e da engenharia. Seu interlocutor era a ciência.
Mas, como literato, tinha um projeto estético. Seu texto denuncia o autor ocupado com a precisão da língua, dominando a técnica narrativa, a poética e a humanidade. Mas não perdia de vista o que Machado de Assis pontificava, no artigo Instinto de Nacionalidade, publicado em 1873: “O que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço.”
Gênero literário ou jornalístico?
Do ponto de vista da teoria da literatura, “Os Sertões” não é um romance histórico, dado que não narra um episódio histórico emprestando feição literária de personagem aos protagonistas. O registro é fundamentado, científico – pelo menos tanto que se podia ser naquele momento histórico-filosófico-literário do Brasil.
“Os Sertões” tampouco é a história romanceada, porque não acrescenta à história episódios romanescos para torná-la mais agradável à leitura.
Encaixa-se, perfeitamente, na categoria de épico. Tem narrador, tem urdidura organizada e lógica (neste caso, real), tem personagens (neste caso, históricas), tem espaço definido e tempo delimitado. Aliás, é isto mesmo que escreveu Araripe Júnior, crítico respeitadíssimo à época do lançamento do livro: “Vós sabeis retratar ao vivo a natureza física, dando intensidade às notas, sem prejudicar a veracidade dos fatos, a qualidade dos fenômenos. É o grande escolho da arte descritiva: exatidão e relevo, naturalismo e brilho, consistência e colorido, poesia e verdade.”
Tendo essas qualidades, seria, então, “Os Sertões”, uma reportagem?
Analisemos. É uma obra original, porque traz achados importantes para a sociedade. É uma obra oportuna (menos para o Exército republicano, que queria mesmo era esquecer o fracasso das expedições que durante um ano investiram contra Canudos). É factual, documentada. E, além disso, demonstra independência de consciência. Conceitualmente, tudo isto se refere ao trabalho jornalístico e está presente em “Os Sertões”.
Além disso, o texto obedece aos paradigmas do jornalismo: o quê/quem, quando, onde, como e por que.
É preciso lembrar que a retórica do jornalismo, à época, era uma retórica literária. Ainda não havia sido incorporada ao jornalismo mundial a técnica da objetividade e da imparcialidade que os Estados Unidos exportariam para o mundo depois da Segunda Guerra Mundial. Até aqui, nenhum conflito entre literatura e jornalismo, no texto de “Os Sertões”, apesar da grandiloqüência.
Mas, na questão programática, o papel do repórter está bem claro na obra. Nas “Notas à segunda edição”, Euclides da Cunha encerra com uma frase do historiador ateniense Tucídides, exibindo o seu reposicionamento.
Notas à segunda edição
“Não tive o intuito de defender os sertanejos, porque este livro não é um livro de defesa; é, infelizmente, de ataque.
Ataque franco e, devo dizê-lo, involuntário. Nesse investir, aparentemente desafiador, com os singularíssimos civilizados que nos sertões, diante de semibárbaros, estadearam tão lastimáveis selvatiguezas, obedeci ao rigor incoercível da verdade. Ninguém o negará.
E se não temesse envaidar-me em paralelo que não mereço, gravaria na primeira página a frase nobremente sincera de Tucídides, ao escrever a história da guerra do Peloponeso – porque eu também embora sem a mesma visão aquilina, escrevi
“SEM DAR CRÉDITO ÀS PRIMEIRAS TESTEMUNHAS QUE ENCONTREI, NEM ÀS MINHAS PRÓPRIAS IMPRESSÕES, MAS NARRANDO APENAS OS ACONTECIMENTOS DE QUE FUI ESPECTADOR OU SOBRE OS QUAIS TIVE INFORMAÇÕES SEGURAS.”
Testemunho
Uma vez em Canudos, Euclides ouviu seguidores de Conselheiro. Na narrativa a seguir (trecho de reportagem publicada no jornal o Estado de S. Paulo em agosto de 1897), podemos ler, ao mesmo tempo uma compreensão desvelada da situação e um depoimento do fazer jornalístico que norteava seus artigos.
Afirma o pequeno jagunço que o velho vigário de Cumbe ali aparecia, de quinze em quinze dias.
(…)
Terminamos o longo interrogatório inquirindo acerca dos milagres do Conselheiro. Não os conhece, não os viu nunca, nunca ouviu dizer que ele fazia milagres. E ao replicar um dos circunstantes que aquele declarava que o jagunço morto em combate ressuscitaria – negou ainda.
– Mas o que promete afinal ele anos que morrem?
A resposta foi absolutamente inesperada:
– Salvar a alma.
Estas revelações feitas diante de muitas testemunhas têm para mim um valor inestimável; não mentem, não sofismam e não iludem, naquela idade, as almas ingênuas dos rudes filhos do sertão.
Aí está. Emerge um novo Euclides.
Libelo
Antes de citar um trecho da “Nota preliminar”, lembremos que o jornalismo tem alguns conceitos que categorizam a notícia e a reportagem. São eles: imparcialidade, atualidade, exemplaridade e proximidade.
A civilização avançará nos sertões impelida por essa implacável “força motriz da História” que Gumplowicz, maior do que Hobbes, lobrigou, num lance genial, no esmagamento inevitável das raças fracas pelas raças fortes.
A campanha de Canudos tem por isto a significação inegável de um primeiro assalto, em luta talvez longa. Nem enfraquece o asserto o termo-la realizado nós filhos do mesmo solo, porque, etnologicamente indefinidos, sem tradições nacionais uniformes, vivendo parasitariamente à beira do Atlântico, dos princípios civilizadores elaborados na Europa, e armados pela indústria alemã – tivemos na ação um papel singular de mercenários inconscientes. Além disto, mal unidos àqueles extraordinários patrícios pelo solo em parte desconhecido, deles de todo nos separa uma coordenada histórica – o tempo.
Aquela campanha lembra um refluxo para o passado.
E foi, na significação integral da palavra, um crime.
Denunciemo-lo.
Euclides da Cunha denunciava a existência de dois Brasis, muito antes de Jacques Lambert ou Gilberto Freyre. Um libelo, como fizera Émile Zola no caso Dreyfus. Isto é mais jornalismo do que literatura. E confere ao livro funções sociais que ultrapassam as suas qualidades literárias ou científicas e que transcendem tanto o projeto historiográfico quanto o projeto estético.
Para a crítica e para os intelectuais, especialmente José Veríssimo, Sílvio Romero, Cassiano Ricardo, Gilberto Freyre e Coelho Neto, talvez a mais importante contribuição de “Os Sertões” tenha sido a tentativa de estabelecer a identidade nacional. O livro tem sido entendido como o primeiro épico da nacionalidade brasileira.
Como num ato de contrição, Euclides escreve, no capítulo V de “Os Sertões”:
“Vivendo quatrocentos anos no litoral vastíssimo, em que palejam reflexos da vida civilizada, tivemos de improviso, como herança inesperada, a República. Ascendemos, de chofre, arrebatados no caudal dos ideais modernos, deixando na penumbra secular em que jazem, no âmago do país, um terço da nossa gente. Iludidos por uma civilização de empréstimo; respingando, em faina cega de copistas, tudo o que de melhor existe nos códigos orgânicos de outras nações, tomamos, revolucionariamente, fugindo ao transigir mais ligeiro com as exigências da nossa própria nacionalidade, mais fundo o contraste entre o nosso modo de viver e o daqueles rudes patrícios mais estrangeiros nesta terra do que os imigrantes da Europa. Porque não no-los separa um mar, separam-no-los três séculos…”
No entanto, os efeitos sobre o leitor são resultantes mais da retórica do que dos fatos. Isto é literatura. Vamos ver um trecho de “A luta”:
Sem comando, cada um lutava a seu modo. Destacaram-se ainda diminutos grupos para queimarem as casas mais próximas ou travarem breves tiroteios. Outros, sem armas e feridos, principiaram a repassar o rio.
Era o desenlace.
Repentinamente, largando as últimas posições, os pelotões, de mistura, numa balbúrdia indefinível, sob a hipnose do pânico, enxurraram na corrente rasa das águas!
Repelindo-se; apisoando os malferidos, que tombavam; afastando rudemente os extenuados trôpegos; derrubando-os, afogando-os, os primeiros grupos bateram contra a margem direita. Aí, ansiando por vingá-la, agarrando-se às gramíneas escassas, especando-se nas armas, filando-se às pernas dos felizes que conseguiam vencê-las, se embaralham outra vez em congérie ruidosa. Era um fervilhar de corpos transudando vozear estrídulo, e discordante, e longo, dando a ilusão de alguma enchente repentina, em que o Vaza-Barris, engrossado, saltasse, de improviso, fora do leito, borbulhando, acachoando, estrugindo. . .
Vamos escandir os principais efeitos adjetivos, no trecho acima:
Sem comando
Diminutos grupos
Casas mais próximas
breves tiroteios
sem armas e feridos
Repentinamente
últimas posições
os pelotões, de mistura
balbúrdia indefinível,
enxurraram na corrente rasa das águas !
Malferidos
afastando rudemente
os extenuados trôpegos;
primeiros grupos
contra a margem direita
gramíneas escassas
felizes que conseguiam vencê-las
congérie ruidosa.
corpos transudando vozear estrídulo
enchente repentina
Vaza-Barris, engrossado
borbulhando, acachoando, estrugindo . . .
Em outro trecho de “A luta”, a narrativa também está eivada de efeitos adjetivos:
E foi uma debandada.
Oitocentos homens desapareciam em fuga, abandonando as espingardas; arriando as padiolas, em que se estorciam feridos: jogando fora as peças de equipamento; desarmando-se; desapertando os cinturões, para a carreira desafogada; e correndo, correndo ao acaso, correndo em grupos, em bandos erradios, correndo pelas estradas e pelas trilhas que as recortam, correndo para o recesso das caatingas, tontos, apavorados, sem chefes . . .
Entre os fardos atirados à beira do caminho ficara, logo ao desencadear-se o pânico – tristíssimo pormenor! – o cadáver do comandante. Não o defenderam. Não houve um breve simulacro de repulsa contra os inimigos, que não viam e adivinhavam no estrídulo dos gritos desafiadores e nos estampidos de um tiroteio irregular e escasso, como o de uma caçada. Aos primeiros tiros os batalhões diluíram-se.
Mesmo tomando-se o substantivo como a base da narrativa jornalística, o seu encadeamento em “Os Sertões” tem efeitos retóricos. Destacamos, a seguir, no trecho acima, os substantivos que o leitor poderá colocar em sequência de leitura – e verá o seu efeito narrativo.
Sem comando, cada um lutava a seu modo. Destacaram-se ainda diminutos grupos para queimarem as casas mais próximas ou travarem breves tiroteios. Outros, sem armas e feridos, principiaram a repassar o rio.
Era o desenlace.
Repentinamente, largando as últimas posições, os pelotões, de mistura, numa balbúrdia indefinível, sob a hipnose do pânico, enxurraram na corrente rasa das águas!
Repelindo-se; apisoando os malferidos, que tombavam; afastando rudemente os extenuados trôpegos; derrubando-os, afogando-os, os primeiros grupos bateram contra a margem direita. Aí, ansiando por vingá-la, agarrando-se às gramíneas escassas, especando-se nas armas, filando-se às pernas dos felizes que conseguiam vencê-las, se embaralham outra vez em congérie ruidosa. Era um fervilhar de corpos transudando vozear estrídulo, e discordante, e longo, dando a ilusão de alguma enchente repentina, em que o Vaza-Barris, engrossado, saltasse, de improviso, fora do leito, borbulhando, acachoando, estrugindo . . .
Para observar a confluência entre jornalismo e literatura, basta levar em consideração a matéria de cada um. Para o jornalismo, nesse trecho anterior, o que importa são os fatos. Para a literatura, nesse mesmo trecho anterior, o que importa são as possibilidades do fato.
Nas reportagens publicadas em O Estado de S. Paulo, Euclides da Cunha faz todos os relatos em 1ª pessoa. Mas quando decidiu publicar as suas anotações como livro, trabalho que realizou durante os três anos que levou para construir uma ponte sobre o rio, em São José do Rio Pardo, Euclides promoveu uma estilização de linguagem que evidencia a presença de um sujeito. Isto implica subjetividade, mais típica do lírico do que do jornalístico. Isto não prejudica o plano estético da obra, mas contraria o discurso anunciado de relato objetivo e fiel da história.
Neste quesito, “Os Sertões” é mais literatura do que jornalismo, embora não seja integralmente num uma coisa nem outra.
Outra consistência a observar é a questão do julgamento.
O jornalista não julga – o entrevistado sim; mas Euclides prefere não dar voz direta aos entrevistados em “Os Sertões”, por isso o narrador.
O literato de mérito abstém-se de julgar – quem pode fazê-lo é o personagem ou o narrador onisciente (este também um personagem).
O tempo em “Os Sertões”
Determinou-a incidente desvalioso.
Antônio Conselheiro adquirira em Juazeiro certa quantidade de madeiras, que não podiam fornecer-lhe as caatingas paupérrimas de Canudos. Contratara o negócio com um dos representantes da autoridade daquela cidade. Mas ao terminar o prazo ajustado para o recebimento do material, que se aplicaria no remate da igreja nova, não lho entregaram. Tudo denuncia que o distrato foi adrede feito, visando o rompimento anelado.
O principal representante da justiça do Juazeiro tinha velha dívida a saldar com o agitador sertanejo, desde a época em que, sendo juiz do Bom Conselho, fora coagido a abandonar precipitadamente a comarca, assaltada pelos adeptos daquele.
Aproveitou, por isto, a situação, que surgia a talho para a desafronta. Sabia que o adversário revidaria à provocação mais ligeira. De fato, ante a violação do trato aquele retrucou com a ameaça de uma investida sobre a bela povoação do S. Francisco: as madeiras seriam de lá arrebatadas, à força.
O caso passou em dias de outubro de 1896.
O espaço em “Os Sertões”
No início de cada capítulo, à guisa de sumário ou de índice, Euclides da Cunha insere uma sequência que funciona como manchetes de jornal. Veja o exemplo em “A Terra” (capítulo I):
Preliminares. A entrada do sertão. Terra ignota. Em caminho para Monte Santo. Primeiras impressões. Um sonho de geólogo.
São tópicos frasais. (Que em jornalismo recebem a denominação técnica de “lead”.)
Vejamos como um trecho do capítulo que ambienta o homem e ambienta a batalha.
É uma paragem impressionadora.
As condições estruturais da terra lá se vincularam à violência máxima dos agentes exteriores para o desenho de relevos estupendos. O regímen torrencial dos climas excessivos, sobrevindo, de súbito, depois das insolações demoradas, e embatendo naqueles pendores, expôs há muito, arrebatando-lhes para longe todos os elementos degradados, as séries mais antigas daqueles últimos rebentos das montanhas: todas as variedades cristalinas, e os quartzitos ásperos, e as filades e calcários, revezando-se ou entrelaçando-se, repontando duramente a cada passo, mal cobertos por uma flora tolhiça – dispondo-se em cenários em que ressalta predominante, o aspecto atormentado das paisagens.
Porque o que estas denunciam – no enterroado do chão, no desmantelo dos cerros quase desnudos, no contorcido dos leitos secos dos ribeirões efêmeros, no constrito das gargantas e no quase convulsivo de uma flora decídua embaralhada em esgalhos – é de algum modo o martírio da terra, brutalmente golpeada pelos elementos variáveis, distribuídos por todas as modalidades climáticas. De um lado a extrema secura dos ares, no estio, facilitando pela irradiação noturna a perda instantânea do calor absorvido pelas rochas expostas às soalheiras, impõe-lhes a alternativa de alturas e quedas termométricas repentinas: e daí um jogar de dilatações e contrações que as disjunge, abrindo-as segundo os planos de menor resistência. De outro, as chuvas que fecham, de improviso, os ciclos adurentes das secas, precipitam estas reações demoradas.
As forças que trabalham a terra atacam-na na contextura íntima e na superfície sem intervalos na ação demolidora, substituindo-se, com intercadência invariável, nas duas estações únicas da região.
Em outro trecho:
E o observador que seguindo este itinerário deixa as paragens em que se revezam, em contraste belíssimo, a amplitude dos gerais e o fastígio das montanhas, ao atingir aquele ponto estaca surpreendido…
Observe-se aí o leitor sendo convocado a participar. Pura técnica literária – veja-se A filosofia da composição, de Edgar Allan Poe.
Gente, matéria-prima do jornalismo e da literatura
Euclides traça um retrato do habitante dos sertões que arrancou de Araripe Júnior um parágrafo laudatório: “Terminada a descrição da terra, isto é, da região das secas, feita a sua história natural e social, o jagunço salta das páginas do livro como um fruto maduro da árvore que o gerou e desenvolveu.”
As observações de Euclides sobre o sertanejo constituem, de fato, mais uma análise social e antropológica. Vejamos um trecho:
O brasileiro, tipo abstrato que se procura, mesmo no caso favorável acima firmado, só pode surdir de um entrelaçamento consideravelmente complexo.
Teoricamente ele seria o pardo, para que convergem os cruzamentos do mulato, do curiboca e do cafuz.
Avaliando-se, porém, as condições históricas que têm atuado, diferentes nos diferentes tratos do território; as disparidades climáticas que nestes ocasionam reações diversas diversamente suportadas pelas raças constituintes; a maior ou menor densidade com que estas cruzaram nos vários pontos do país; e atendendo-se ainda à intrusão – pelas armas na quadra colonial e pelas imigrações em nossos dias – de outros povos, fato que por sua vez não foi e não é uniforme, vê-se bem que a realidade daquela formação é altamente duvidosa, senão absurda.
Recursos de estilo em “Os Sertões”
RITMO
Apenas a artilharia, na extrema retaguarda, seguia vagarosa e unida, solene quase, na marcha habitual de uma revista, em que parava de quando em quando para varrer a disparos as margens traiçoeiras; e prosseguindo depois, lentamente, rodando, inabordável, terrível…
A presença da métrica poética é clara nesse trecho. Pode ser declamado com a beleza da leitura dramática, porque há um ritmo poético que mescla por exemplo a redondilha e o decassílabo. Isto é literatura.
ANALOGIAS
Outro, o velho curiboca desfalecido que não vingara disparar a carabina sobre os soldados, parecia um desenterrado claudicante.
O rosto, onde o prognatismo se acentuara, desaparecia na lanugem espessa da barba, feito uma máscara amarrotada e imunda.
À luz crua dos dias sertanejos aqueles cerros, aspérrimos rebrilham, estonteadoramente – ofuscante, num irradiar ardentíssimo.
Nesse último trecho, não há um quê de Eça de Queiroz nessa “luz crua” e nesse “irradiar ardentíssimo”?
E note-se o efeito onomatopaico de raspagem, nos cerros aspérrimos que irradiam…
TOM
As notas das cornetas vibravam em cima desse tumulto, imperceptíveis, inúteis…
Por fim cessaram. Não tinham a quem chamar. A infantaria desaparecera…
Pela beira da estrada, viam-se apenas peças esparsas de equipamento, mochilas e espingardas, cinturões e sabres, jogados a esmo por ali fora, como coisas imprestáveis.
Inteiramente só, sem uma única ordenança, o coronel Tamarindo lançou-se desesperadamente, o cavalo a galope, pela estrada – agora deserta – como se procurasse conter ainda, pessoalmente, a vanguarda. E a artilharia ficou afinal inteiramente em abandono, antes de chegar ao Angico.
Os jagunços lançaram-se então sobre ela.
É praticamente o inteiro período construído em vogais abertas – notas de corneta.
SONORIDADE
Vaza-Barris escachoando (onomatopeia)
O povoado revivesveu (variedades prefixionais)
engrimponados nas pedras vacilantes (variedades verbais)
Transmontadas as serras, sob a linha fulgurante do trópico (outro aspecto verbal)
As assonâncias construídas, abaixo (especialmente pelo uso das sibilantes), imitam “um longo uivar de ventania forte”:
Projetis de toda a espécie, sibilos finos de Mannlicher e Mauser, zumbidos cheios e sonoros de Comblain, rechinos duros de trabucos, rijos como os de canhões-revólveres, transvoando a todos os pontos: sobre o âmbito das linhas; sobre as tendas próximas aos quartéis-generais; sobre todos os morros até ao colo abrigado da Favela, onde sesteavam cargueiros e feridos; sobre todas as trilhas; sobre o álveo longo e tortuoso do rio e sobre as depressões mais escondidas; resvalando com estrondo pela tolda de couro da alpendrada do hospital de sangue e despertando os enfermos retransidos de espanto.
Em outro trecho, as aliterações propiciadas pelas letras P e T, concertam a sinfonia da linguagem:
Dali descem, acachoantes, para o levante, tombando em catadupas ou saltando “travessões” sucessivos, todos os rios que do Jequitinhonha ao Doce procuram os terraços inferiores do planalto…
Fechemos este artigo.
Para isto, um corolário jornalístico-literário com que Euclides da Cunha encerrou o seu livro “Os Sertões”:
Fechemos este livro.
Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 mil soldados.