NEOLIBERALISMO E COMUNICAÇÃO SOCIAL

Graças principalmente à falência do “Estado do Bem Estar Social”, que predominou na Europa desde o final da Segunda Guerra, ganha força a velha doutrina econômica liberal travestida modernamente por neoliberalismo. Desde Reagan, nos Estados Unidos, e Margareth Thatcher, na Inglaterra, até o ditador Pinochet, no Chile, esta ideologia se espalha pelo mundo, pregando a supremacia do mercado sobre todas as coisas, incluindo os direitos sociais e trabalhistas e, se necessário, até os direitos políticos. De fato, os principais arautos do neoliberalismo, os economistas Hayeck e Friedman, não hesitaram em louvar a política econômica levada a efeito pelo General Pinochet, endossando a sanguinária ditadura que o mesmo comandou. Além disto, são públicas as posições destes e de outros teóricos da “Escola de Chicago” quanto ao fato de que a atividade política atrapalha o desempenho da economia.

Quando tudo se subordina ao mercado, como pregam os neoliberais, a sociedade passa a servir à economia, o que põe por terra qualquer veleidade civilizatória. E subverte o que tem sido consenso desde a quebra da Bolsa de Nova York em 1929, ou seja, a necessidade de mecanismos de controle sobre a voracidade de acumulação do capital e suas conseqüências: a oligopolização, as crises cíclicas, a ameaça aos direitos sociais e à soberania das nações. Ao defenderem o “Estado Mínimo”, os neoliberais menosprezam o papel do Estado na indução ao desenvolvimento e na prática de políticas sociais que asseguram aos mais pobres a esperança de um dia serem cidadãos. Afinal, não é o mercado quem há de oferecer educação e saúde públicas gratuitas e de boa qualidade.

Ricos ou pobres, os países que adotaram o neoliberalismo sofreram as conseqüências tanto no plano econômico quanto social. Sob o govêrno Thatcher, a economia inglesa decresceu e foi superada pela Itália. O número de miseráveis passou de cinco para quatorze milhões entre 1979 em 1992. A “dama de ferro”, que usou a polícia para sufocar uma greve de mineiros, mereceu um verdadeiro “pito” da ultra discreta Rainha Elizabeth que condenou de público o descaso do govêrno Thatcher para com a pobreza. Nos Estados Unidos, a tuberculose cresceu 20% entre 1979 e 1992 e a crise de mercado para os produtos americanos obrigou George Bush a implorar aos japoneses que comprassem seus automóveis. Os nipônicos, sempre distantes do neoliberalismo e ultra-protecionistas em relação a seus produtos, se negaram a atendê-lo. Coincidência ou não, Bush passou mal e vomitou no colo do premiê do Japão. Quanto à América Latina, as conseqüências do neolioberalismo são ainda piores. Crescem a concentração de riquezas, o desemprego, a miséria e a exclusão social, enquanto a desindustrialização e as privatizações a qualquer custo comprometem a soberania da nações.

Apesar destas evidências, a doutrina liberal continua ganhando adeptos. E tem ajudado a eleger governantes comprometidos com ela em diversos países, inclusive o Brasil. Pode-se mesmo afirmar que alguns dos princípios do neoliberalismo são consumidos pela população, certamente porque bem embalados pela mídia. Esse processo teve início nos países mais ricos através de vultuosas doações feitas por fundações mantidas por milionários aos institutos de pesquisa e publicações especializadas controlados por pensadores neoliberais. Em artigo publicado no jornal Le Monde Diplomatique, Susan George compilou algumas destas contribuições. Segundo seu levantamento, de 1943 a 1993, elas variaram em torno de 165 milhões de dólares por ano. É muito dinheiro. Certamente, desse investimento se espera algum retorno.

Parte destes recursos foram para os países do terceiro mundo, financiaram pesquisas e, principalmente, a divulgação do pensamento neoliberal. A diferença está em que, entre nós, as publicações especializadas cedem espaço para a chamada grande imprensa, em especial a televisão. E, como cada veículo de comunicação tem sua linguagem própria, aqui não se tem divulgado os aspectos doutrinários do neoliberalismo. Salvo exceões, a grande mídia defende caso a caso políticas de cunho neoliberal, como em outros tempos defendeu políticas protecionistas. Na prática deste casuísmo, se reduz a teoria a princípios simplificados dos quais se escamoteiam conseqüências negativas e aspectos impopulares. Também assim a população é mais facilmente induzida a assumi-los como “máximas” de senso comum às quais opiniões contrárias aparecem como aberrações individuais.

A aceitação destes “slogans” pela população tem ocorrido com espantosa facilidade devido a conjugação de quatro fatores:

a) Poder da imprensa – Além de ser considerada a instituição de maior prestígio, é detentora de incontrastável poder na formação de opiniões. Ressalte-se que, entre os meios de comunicação, a televisão lidera como o veículo mais confiável, mais informativo e mais independente pela maior parcela da população . Acrescente-se que o Brasil é o terceiro maior consumidor de aparelhos de televisão, podendo a vir ser o segundo. A maior tiragem de jornal – a da Folha de São Paulo – é de menos de 500 mil exemplares durante os dias de semana enquanto a Rede Globo tem atingido até 34,5 milhões de telespectadores. Na Grande São Paulo, sua audiência é pouco maior que a soma de todas as seis demais emissoras. Assim, não é exagero afirmar que a Globo exerce virtual monopólio na comunicação massiva.

b) Reiteração de valores já predominantes – Por definição, o senso comum é mais facilmente assimilável que idéias em contrário. Os “slogans” de cunho neoliberal reciclam e reforçam centenárias crenças típicas do velho capitalismo concorrencial como o elogio à propriedade, à livre iniciativa, a supremacia do privado sobre o público, entre outras.

c) Ressentimento genérico quanto a tudo o que é estatal ou público – Usuários dos serviços públicos reclamam, muitas vezes com razão, de sua qualidade e insuficiência, enquanto não usuários reclamam do fato de que pagam impostos e não usufruem dos serviços. Reclama-se de privilégios fatuais ou atribuíveis a funcionários públicos e a políticos; de um sem número de casos de corrupção, ineficiência, omissão, abuso do poder por estes praticados; de sua impunidade; e de decisões desastrosas de política econômica.

d) Crítica difusa ao Estado – É extensão da crítica que as pessoas fazem aos governos e suas políticas quando, não importando os motivos, sentem declinar sua qualidade de vida e frustrarem-se suas expectativas. Tais fatos, que poderiam ocorrer em quaisquer modelos de Estado, são atribuídos exclusivamente ao que aí está porque em sua vigência tem ocorrido. Aqui se inclui a reiteração ao gigantismo do Estado, “herança da ditadura” na expressão dos âncoras de telejornais, numa apropriação das bandeiras democráticas e de esquerda de nosso passado recente.

Resulta desta combinação que a media explora ad nauseam os demais fatores, erigindo os dois últimos em principais causas de nossas desgraças, e exacerbando na população, o sentimento de estar sendo lesada. Nesta situação, é compreensível que se procurem, ao mesmo tempo, bodes expiatórios e soluções mágicas. E ali está, bem no centro da sala, a confiável televisão a indicar uns e outros.

As soluções mágicas têm sido as políticas de cunho neoliberal propostas pelo Governo, por parlamentares e forças sociais às quais interessam, e em torno das quais os meios de comunicação forjam um consenso popular que nem sempre corresponde à realidade. Ao dizer “é isto que o povo quer”, o apresentador de tevê, que já se credenciou como seu representante, sente-se autorizado a respaldar uma política ou vetar outras. Alguns exemplos:

a) Privatizações – Enfatizam-se custos e dívidas da empresa e compara-se seu desempenho ao de congêneres privadas, sempre tido como superior. Omite-se a função social das estatais, bem como o fato de que praticaram preços baixos, muitas vezes, por pressão do setor privado ao qual forneciam, sem o quais este não se viabilizaria. Da mesma forma, se omitem empréstimos subsidiados e favorecimentos públicos à empresas privadas nacionais e multinacionais.

b) Abertura às importações – Comparam-se qualidade e preço dos produtos importados e omitem-se conseqüências como desindustrialização, desemprego e aumento do déficit comercial, por um lado, bem como diferenças de juros e possibilidades de dumping, por outro.

c) Custo Brasil – Com respaldo em análises feitas pelo Banco Mundial, os encargos sobre salários e direitos trabalhistas em geral passaram a ser os grandes responsáveis pelo desemprego. Empresários e líderes sindicais chegaram a ensaiar acordo que limitava os encargos em troca de mais empregos quando não há evidências de causalidade. Ao contrário, nem a redução média dos salários ocorrida nos últimos anos afastou o fantasma do desemprego. O ardil foi proibido pela Justiça. Por outro lado, não se dá a devida ênfase à desigual concorrência antes apontada, nem aos juros escorchantes que, apesar da constatação do Senhor Presidente da República, escorchantes continuam.

d) Falsas saídas para o desemprego – De alguns anos para cá, desde que o desemprego industrial se acentuou, intensificaram-se estórias fantásticas sobre desempregados que viraram artesãos, autônomos, lojistas, franqueados e pequenos empresários. Por aí vão centenas de casos que, como contos de fadas, servem para vender ilusões ao atual e futuro desempregado. A ênfase no sucesso de “abrir o próprio negócio” esconde as estórias de fracasso que não se contam.

e) Políticas Sociais – Expõem-se as chagas dos serviços públicos de saúde, educação, assistência, segurança, seguridade social, ente outros, e omite-se o drástico corte de verbas que estes têm experimentado, devido à política neoliberal de contenção de custos sociais. São comuns matérias do “Globo Repórter” neste sentido, com o aparente objetivo de denunciar a falência dos serviços. Se se omitem os cortes, cabe a pergunta: Cui prodest? – A quem interessa – senão aos concorrentes privados e às multinacionais.

f) Relações entre Executivo e Legislativo – No intuito de fazer aprovar as reformas e outras medidas liberalizantes, a media tem acuado o Congresso com enxurradas de reportagens sobre corrupção e ausência de congressistas, sempre generalizantes. “Verdadeiros” representantes do povo, os apresentadores de tevê jogam sobre seus concorrentes eleitos a culpa pelo atraso das reformas e por todos os males do país. Saliente-se que tais críticas são as que mais “pegam” naquilo a que chamamos de senso comum. Político virou sinônimo de corrupto; e o Congresso, a instituição menos confiável, segundo pesquisas de opinião.

Já foi dito que a reiteração de que a opinião pública deseja isto ou aquilo forja consensos. Deve-se dizer aqui que isto ocorre mesmo quando a adesão não se dá na apregoada intensidade; mesmo quando a maior parte das pessoas desconhece o conteúdo das propostas. Bastante elucidativo do afirmado, é matéria da Folha de São Paulo de 01/07/96 (pg. 2-3), com o título “65% dos brasileiros querem as reformas”; e subtítulo “Maioria culpa Congresso por atraso”. O acesso à pesquisa original da Datafolha permitiu que se constatasse que apenas 10% dos entrevistados consideravam-se bem informados em relação às reformas, dado não mencionado na matéria. Inúmeros outros exemplos poderiam ser dados não só de indução de consensos como, e principalmente, da constatação que um sem número deles, ainda que contem com a adesão de maiorias, baseiam-se numa opinião pouco consolidada sobre o assunto. Isto configura uma assunção débil, passível de mudança no caso de um debate mais profundo. É resultado da forma fragmentária e casuística pela qual os meios de comunicação divulgam as propostas neoliberais. E de seu açodamento em buscar respaldo popular para as mesmas.

Na guerrilha particular com o Congresso, a media visa também perpetuar-se como principal interlocutora de um Executivo rico em verbas e possibilidades negociais, não importando as funestas conseqüências às incipientes instituições democráticas e o círculo vicioso que acarreta para o valor social da atividade política. Esta perde prestígio atraindo cada vez mais pessoas que nela vislumbram apenas oportunidades de enriquecimento ilícito, ao mesmo tempo em que afugenta os demais e leva a maioria ao descrédito nas instituições e na desvalorização da participação, inclusive eleitoral.

Tudo isto ocorre porque, salvo exceções, meios de comunicação excessivamente oligopolizados possuem interesses outros que o de bem (ou mal) comunicar. Os oligopólios a que pertecem dedicam-se a negócios vários, muitos dos quais dependem de favorecimentos governamentais. Reproduzem, desta forma, a velha prática de privatizar o que é público, a qual, de público, condenam. Daí também que sua atuação na defesa de medidas liberalizantes trai menos uma posição político-ideológica (aliás, nunca assumida) e mais a convergência de seus interesses com os de membros do Executivo, numa reprodução ampliada do conceito de “anéis burocráticos” proposto, quem diria, por F. H. Cardoso.

Disto resulta, de um lado, uma desculpa antecipada da media às conseqüências negativas que poderão advir de tão arriscadas políticas e, de outro, uma divulgação excessivamente fragmentada da ideologia neoliberal. Assim divulgada, esta ideologia é assumida de forma débil pela população, ainda que a rapidez e a extensão de sua propagação assuste aos menos atentos. Como todo senso comum, não se trata de um conjunto de idéias mobilizador mas tão somente conformador de opiniões que respaldem a realização de interesses concretos. Assim tem-se que, mesmo débil, a ideologia neoliberal à brasileira, tem sido suficiente à implementação de políticas que poderão fazer tábua rasa dos direitos sociais duramente conquistados pelos trabalhadores, além de comprometer nosso futuro como Nação soberana. O terremoto neoliberal exigirá descomunal esforço para a reconstrução do Estado e da economia.

É, entretanto, importante repisar que a forma fragmentária pela qual se tem divulgado as propostas deste tipo, torna superficial sua assunção pela população. Não resistente a debates, ruirá como castelos de cartas. Como tudo que é solido se desmanchará no ar, para espanto, inclusive, de muitos neoliberais que sorriem à frente da televisão e descansam, paradoxalmente, à sombra de um Estado que ainda clama por tornar-se verdadeiramente público.

É o debate, portanto, que propiciará o fim da manipulação e de versões deliberadamente enganosas sobre os reais interesses da população. Isto exige, antes de mais nada, a democratização dos meios de comunicação. E, pelo que foi visto, que se cumpra o Parágrafo 5º do Artigo 220 da Constituição: “Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio”.

Lembre-se que onde não houver Estado, estados paralelos surgirão, seja o dos oligopólios multinacionais, seja o do crime organizado, seja o dos meios de comunicação, seja ainda uma combinação dos três. Seria romântico, se não fosse enganoso, fazer crer que o Estado possa ser substituído com vantagem por um difuso conceito de mercado, eventualmente travestido – e nobilitado – em sociedade civil, como se neste não se gestassem perversas desigualdades e congruentes formas de dominação.


Resumo de palestra proferida durante Simpósio sobre “O Neoliberalismo no Brasil” da 48a. Reunião Anual da SBPC – Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – São Paulo, PUC, 09/07/1996.

Sobre levi

Poeta, ficcionista, ensaísta, sociólogo e professor universitário. Presidente da UBE - União Brasileira de Escritores, diretor do Sindicato dos Sociólogos de S. Paulo e Presidente do IPSO - Instituto de Pesquisas e Projetos Sociais e Tecnológicos. Integra a Coordenação do Movimento Humanismo e Democracia e o Conselho de Redação da Revista Novos Rumos. Foi Presidente da ASESP – Associação dos Sociólogos do Estado de São Paulo, Administrador Regional de Santana -Tucuruvi (SP). Coordenador da Proteção dos Recursos Naturais do Estado de São Paulo. Livros Publicados: Burocratas e Burocracias (ensaio, SP, Ed. Semente, 1981); Ônibus 307 – Jardim Paraíso (poesia, SP, Muro das Artes, 1983); A Portovelhaca e as Outras (poesia, SP, Paubrasil, 1984). O Seqüestro do Senhor Empresário (romance, SP, Publisher/Limiar, 1998); O Inimigo (contos, Limiar – SP, 2003). Recebeu o Prêmio de Revelação de Autor da APCA – Associação Paulista de Críticos de Arte e outros. Publicou diversos artigos, contos, crônicas, poemas e resenhas literárias em coletâneas, jornais e revistas.
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