(Prefácio do livro “Ruptura – Anomia na civilização do trabalho” de Antonio Rezk).
Levi Bucalem Ferrari
Mas o que importa não é que os alvos ideais sejam ou não atingíveis concretamente na sua sonhada integridade. O essencial é que nos disponhamos a agir como se pudéssemos alcançá-los, porque isso pode impedir ou ao menos atenuar o afloramento do que há de pior em nós e em nossa sociedade.
Antonio Candido.
O livro que o leitor tem em mãos constitui instrumento indispensável à compreensão das grandes questões de nossa era e, conseqüentemente, dos inúmeros problemas que afetam nosso cotidiano. Seu autor, Antônio Rezk, tem como primeiro compromisso a busca da verdade, única forma, segundo ele, de superação de uma sociedade mundial extremamente injusta e sem perspectivas. Por isso, a assistir à sua própria crise uma vez que é dela gestora e vítima. A finalidade última da contribuição de Rezk é o alcance de patamar civilizatório mais elevado; algo que se possa chamar de civilização verdadeiramente. Sem meias palavras, sem adjetivos limitadores, subterfúgios, hipocrisias, panacéias, falsos remédios. A crise, ou anomia, é doença social generalizada. Envolve desde o conjunto das relações sociais até o que pensamos sobre elas: nossas atitudes, valores e crenças. E como as reproduzimos e justificamos, através de ideologias. O primeiro passo é, pois, desmistificá-las. Neste intento, Rezk vai fundo em suas pesquisas e no desenvolvimento de seu raciocínio. Enfrenta desafios de todos os tipos, incluindo-se tabus arraigados nas visões de mundo predominantes, tanto a clássica ou liberal quanto a representada pela alternativa marxista, pelo menos em suas vertentes mais difundidas.
Segundo Rezk, a superação definitiva da anomia não está senão na ruptura da maior das ideologias que o mundo conheceu desde seus primórdios: a da valorização do trabalho para outrem, seja ele o soberano ou a empresa; o dono da terra ou o mercado.
Por sua importância, o livro se inscreve entre as grandes obras destinadas a permanecer como marcos na história do pensamento. Quer concordemos ou não com as premissas e conclusões de seu autor, não há negar-lhe a coragem no enfrentamento de convicções arraigadas, bem como a originalidade das análises e propostas; não há negar a qualidade de livro que veio para ficar e cuja leitura atenta ampliará nossa compreensão do mundo.
Por tudo isso, é livro polêmico, não pretende repisar o que já sabemos. Mesmo as pessoas mais informadas encontrarão aqui conceitos e teses novas e inovadoras, cujo alcance nos obriga a contextualizá-las na história recente dos fatos e do pensamento.
Ao contrário de seus antecessores, o século XX não nos presenteou com qualquer teoria explicativa abrangente das relações sociais e de suas possibilidades de transformação. Não que o pensamento humano tivesse se estagnado, longe disso, mas o debate entre a teoria clássica, representada pelos liberais, e a crítica marxista monopolizaram a cena. Pela força interpretativa de cada uma, principalmente da última, o embate entre ambas sufocou qualquer tentativa de vôo autônomo da imaginação antropológica.
Visto de longe, como normalmente vemos a história mais remota, foi um século rápido. Em sua primeira metade, muitos eventos de ordem mundial se sucederam uns sobre os outros: as duas grandes guerras; as revoluções russa e chinesa; o advento do fascismo e do nazismo.
Ao mesmo tempo ocorre a incorporação de outras regiões do planeta à economia capitalista comandada pela Europa, e, logo depois, a ascensão dos Estados Unidos como potência econômica e militar a exigir a transferência do centro hegemônico do capitalismo e do poder mundiais.
No campo da produção, assiste-se ao surgimento da grande empresa industrial estruturada a partir da linha de montagem e o conseqüente aumento da automação do trabalho humano. Este fica destituído de vez de qualquer veleidade criativa. A assinatura do artesão, seu estilo e a dignidade a ele associada perde sentido na nova economia.
No campo político, surgem os sindicatos e os partidos socialistas, ao mesmo tempo em que perdem peso as últimas tradições que sustentavam o poder político feudal e pré-capitalista. Remanescem, em alguns casos, apenas sua pompa e rituais, quando estes não atrapalham a expansão do capital.
Na esfera do pensamento, enquanto os liberais comemoram a vitória de suas teses, os marxistas interpretam o imperialismo como nova etapa do capitalismo. Quanto ao nazi-fascismo – que a todos surpreendeu – os liberais o acusam de retrocesso à economia pré-mercado. E, sob a denominação genérica de estado nacional-popular, enfiam no mesmo saco este tipo de autoritarismo com aquele resultante das experiências soviética e chinesa, autodenominados ditadura do proletariado. Por esta razão, para os liberais, os Estados Unidos, passam a ser o exemplo mais acabado da economia de mercado, porque livres de quaisquer peias pré-capitalistas.
Desde há muito, e principalmente nos dias de hoje, vemos os resultados da insânia de se entregar tudo ao mercado: a ocorrência de crises financeiras de tal monta que obrigam os Estados Nacionais a injetarem recursos públicos nestes mesmos mercados, agonizantes em função da própria ganância e da falta de regras que o disciplinem.
Os marxistas da primeira metade do século XX concordariam com a importância do fim de qualquer entrave de caráter tradicional ao desenvolvimento do capitalismo. O avanço do capital significa também a criação das forças que irão derrubá-lo, ou seja, o proletariado, sua consciência de classe e organização em sindicatos e partidos revolucionários. O capitalismo é condição do socialismo.
Desta forma, uns e outros acabam por fazer o elogio ao trabalho, ponto de partida da acumulação do capital e expansão do capitalismo. Registro isso como uma das principais assertivas de Rezk na sua contraposição a essa ideologia.
A história do século XX continua. Sofreu alterações após a segunda guerra com o fortalecimento dos movimentos operários na Europa e o surgimento do estado do bem-estar social; a guerra fria entre as novas potências, EUA e URSS; e o espalhar-se de partidos comunistas por todo o mundo. Nos países menos desenvolvidos esses partidos passam a identificar-se com o desenvolvimentismo em moldes capitalistas. Ainda que também se propusessem ao implemento dos direitos sociais numa aproximação com o que ocorria na Europa.
O termo desenvolvimento entra em moda sob as mais variadas conotações. Muito resumidamente: enquanto os adeptos do capitalismo pregavam o “crescimento do bolo” para depois se pensar, se fosse o caso, em sua divisão, alguns marxistas do pós-guerra acreditavam que crescimento e divisão poderiam ocorrer simultaneamente. Desenvolveram até teorias sobre uma interação necessária entre os dois processos: a idéia de que por aí o sedutor estado do bem-estar se espalharia pelo mundo.
Elogio ao capital e ao trabalho desde que domado o primeiro e protegido o segundo. Com leis adequadas em ambos os casos e um Estado suficientemente forte para assegurar sua aplicação e o equilíbrio entre aqueles contrários. Ocorre o que Galbraith chamaria de “consenso”. Este inclui ainda apoio aos projetos desenvolvimentistas no terceiro mundo e tolerância controlada das dívidas assumidas pelos países que o compõe.
As últimas décadas do século mostrariam os limites dessas ilusões. E deixariam claro que tudo o que se conseguiu nas décadas anteriores foi, em grande parte, concessão forçada do capital e das potências capitalistas. Aqui se incluem as pressões dos sindicatos fortíssimos do período e as ameaças trazidas pela guerra fria. As potências socialistas fortalecidas no pós-guerra e o avanço dos movimentos de libertação nacional com conotações socialistas assustavam os países capitalistas centrais.
Entretanto, o sonho durou pouco; junto com o muro de Berlim caíram as bases que sustentavam o estado do bem-estar.
Outros fatores contribuiram para isso: o aumento do desemprego; a “globalização” da economia – ou mundialização do capital, como queiram; e o conseqüente enfraquecimento dos estados nacionais e dos sindicatos.
Ressurgem com toda força as idéias liberais tendo como contraponto, não mais os entraves feudais ou monárquicos, mas o estado do bem-estar, a legislação trabalhista e as medidas protecionistas adotadas por alguns países do terceiro-mundo. No final dos anos 70, Margareth Thatcher, na Inglaterra e Ronald Reagan, nos Estados Unidos, põe uma pá de cal nas idéias intervencionistas de Keynes e no consenso aludido por Galbraith. Quanto ao último, basta lembrarmos a afirmação de Thatcher sobre as dificuldades financeiras dos países em desenvolvimento: “… se não têm dinheiro para pagar suas dívidas, entreguem seus territórios”.
Desde então até o final do século XX, assistimos ao triunfo da ideologia liberal que se assume como pensamento único, sem contestação. Um de seus arautos, Francis Fukuyama, chega a falar em fim da história. Para ele, não havendo possibilidade de contradição, não há a de mudanças na estrutura social.
O debate de idéias empobrece ainda mais, resvala a indigência e procura algum lugar vago sob os viadutos. Ou nas sarjetas.
Mesmo entre socialistas, ocorreu enorme perplexidade depois da queda do muro de Berlim, do avanço da globalização e da apologia ao neoliberalismo. Muitos perderam o interesse ou até se arrependeram dos “arroubos de juventude”. Entre os demais reina um saudosismo paralisante. Ainda que, todavia, chovam teses sobre os efeitos maléficos da globalização.
Acrescente-se que, num período imediatamente anterior, as ditaduras militares, que proliferaram pela América Latina, haviam aproximado os marxistas dos liberais de extração democrática. Era-lhes comum a condenação do Estado autoritário, excessivamente centralizado e burocrático, bem como a defesa do Estado de Direito e da segurança jurídica, e a exaltação da sociedade civil – e, conseqüentemente do mercado – como locus mais oxigenado de liberdade. Enfim, teses que se mostrariam bastante adequadas como premissas da pregação neoliberal que viria a seguir.
Como pano de fundo, mas não menos importante, assiste-se aos primeiros sintomas do desemprego estrutural com conseqüências as mais perversas para os trabalhadores de qualquer extrato.
É nesse imbróglio de problemas e perplexidades que Antonio Rezk cria o Movimento Humanismo e Democracia e propõe estudos e debates sob novas bases conceituais. Não por acaso, o primeiro livro do grupo chamar-se-ia “A revolução tecnológica e os novos paradigmas da sociedade” (São Paulo, IPSO, 1994). Para o MHD – depois MHD-Ruptura, o desemprego que se assistia não era resultante apenas da recessão econômica. Veio para ficar, resultado que é da aplicação mais intensiva da tecnologia na produção. A retomada do crescimento não significaria o fim do desemprego.
Além de mudanças substanciais na qualidade do emprego – para pior na maioria dos casos – seu número total seria decrescente. A diminuição da classe trabalhadora enfraqueceria seu poder de barganha, sindicatos à frente.
As pessoas arraigadas a seus valores tradicionais rejeitam tudo o que vai de encontro a eles. Quantas vezes, Rezk e eu, atuando em Congressos de Sociólogos, fomos acusados de sermos contra os sindicatos, quando apenas constatávamos seu iminente enfraquecimento.
Numa sociedade onde emprego é condição de cidadania, seu contraponto, o desemprego, passa a ser o principal responsável pelo aumento da exclusão social. E fonte de problemas intra-familiares, inter-individuais e individuais. Pesquisas e depoimentos dão conta de que o desempregado sente-se culpado e tem queda significativa em sua auto-estima por ter perdido o emprego ou por não consegui-lo.
A partir destas constatações, ainda relativamente simples, Rezk vai muito mais longe. Num primeiro momento, pesquisa exaustivamente tudo que diz respeito a: o impacto da tecnologia no mundo do trabalho; o aumento da produtividade individual e conseqüentemente da mais-valia relativa; o desemprego estrutural; suas conseqüências sociais e individuais já apontadas; a previsível crise da “civilização do trabalho”; e a resultante anomia provocada pela ausência de normas e valores mais consentâneos com as novas realidades.
Em seguida, faz um mergulho profundo e simultâneo na História (dos fatos e das idéias) e na Psicanálise para, enfim, oferecer-nos esta abrangente obra de Antropologia Política, conforme conceituação utilizada por Fábio Lucas no prefácio do livro anterior de Rezk (A Revolução do Homem – São Paulo, Textonovo, 2002).
Aqui reside outra característica do pensamento rezkiano: na busca da verdade, a postura é radicalmente teleológica e, por isso, ampla, supra-disciplinar. Lembra Espártaco, quando, prestes a conquistar Roma e sua famosa biblioteca, perguntado sobre que livros gostaria de ler, respondeu: todos.
Rezk não se subordina às especialidades impostas pela divisão acadêmica do saber que tende à ultra-especialização. Vale dizer, ao final, à fragmentação do pensamento. Esta tem sido um dos maiores entraves a novas concepções totalizantes das relações sociais e sua dinâmica. Tem a ver com a mixórdia, já apontada aqui, em que chafurda a maior parte da produção acadêmica.
Livre destas e de outras peias, o autor deste livro, na busca de seu intento, nutre-se de toda a informação que lhe pareça adequada, seja ela proveniente desta ou daquela disciplina. Assim, se por um lado, ele nos oferece a visão totalizante que o leitor vai deslindar neste trabalho, por outro, arrisca-se a um dificultoso acolhimento pelo meio acadêmico. Este dominado pela visão multifacetada imposta pelos senhores feudais das disciplinas cujos limites estão rigorosamente demarcados.
Da mesma forma, Rezk não separa a busca do conhecimento da militância política. Filia-se metodologicamente ao proposto por Marx em suas Teses sobre Feuerbach, sintetizadas na sentença: Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diferentes maneiras; a questão é transformá-lo. Rezk, advindo de atuação política múltipla e intensa percorre o caminho inverso dos filósofos criticados por Marx. Este livro, como os anteriores, são também sínteses das experiências práticas e investigativas de Antonio Rezk.
O político e o pensador são faces da mesma moeda. A trajetória pública de Rezk, mais conhecida e reconhecida, vale aqui ser lembrada suscintamente.
Desde os anos sessenta, quando o Brasil ainda vivia sob o regime autoritário, comunistas, socialistas e democratas de todos os matizes abrigavam-se sob o amplo guarda-chuva do MDB – Movimento Democrático Brasileiro.
A participação política extremamente limitada, com partidos reduzidos a dois e bastante controlados pelo regime, levaria alguns opositores a concentrarem seus esforços no movimento comunitário. A luta de resistência envolveria a população a partir de suas carências mais imediatas: escolas, creches, postos de saúde, transportes, infra-estrutura urbana. Em São Paulo proliferam as sociedades amigos de bairro. Rezk à frente, organizaria quase uma centena delas e o processo culminaria com os Conselhos Municipal e Estadual dessas sociedades, fundados e dirigidos por ele.
Ao movimento se juntariam urbanistas de renome, além de líderes comunitários e políticos. O guerreiro da cidade é também seu pensador e poeta. Em livro urdido à época, mas publicado apenas em 1986, Rezk sentencia:
“… e a cidade deve ser bela. Portanto, deve ser boa. Deve ser justa. A beleza é sempre produto de um justo equilíbrio, da correta composição das cores, dos sons, da luz, de movimento e de liberdade. Esta é a cidade que eu idealizo: profundamente humana e socialmente justa. Rica: socialmente rica”. (Rezk – Cidade, Novos Rumos, SP, 1986).
É justo enfatizar que o movimento tinha dois objetivos: um ostensivo, o referente à melhoria das condições de vida dos bairros mais carentes de São Paulo; e outro, quase clandestino, de, através destas organizações populares, formar uma frente ampla de resistência à ditadura e de luta por direitos humanos e sociais. Na liderança do processo, Antonio Rezk é eleito suplente de vereador em 1972, assumindo o cargo durante aquela legislatura. Sua atuação abrange agora a esfera política mais ampla. Seu papel será o de costurar alianças na busca também do segundo dos objetivos apontados. Afinal, era o líder mais expressivo do clandestino Partido Comunista Brasileiro na capital paulista. Foi reeleito em 1975. No ano seguinte foi escolhido pela Associação dos Jornalistas Credenciados da Câmara como o vereador mais atuante.
Eleito deputado estadual em 1978, exerceu dois mandatos consecutivos (1979 a 1986). Sua luta continua e inclui a defesa dos presos políticos e dos oprimidos em geral, o Estado de direito, as liberdades democráticas, anistia, eleições diretas. O guerreiro incansável participa de todas as frentes de luta representando, segundo seu ex-colega, Aluysio Nunes, o “ponto de encontro dos demais parlamentares da oposição autêntica”, a saber, aquele que entre os pares, dirimia as dúvidas, arbitrava democraticamente as divergências, apontava caminhos. Paciência de Jó, sabedoria de Salomão, além da bravura de Aquiles, em reuniões que varavam noites e fins de semana, Antônio Rezk revela-se ao mesmo tempo o líder humilde, o colega fraterno, o amigo solidário, o homem generoso, mas também o guerreiro que não teme falar duro com autoridades civis e militares. Honrava como poucos o mandato que o povo lhe conferira.
Poucos lembram, mas foi em seu automóvel que Luiz Inácio Lula da Silva fugiu ao cerco que a polícia política lhe montara durante a greve dos metalúrgicos em São Bernardo.
Nos anos que se seguiram Rezk teve participação decisiva na coordenação do movimento pelas Diretas-Já e, logo depois, na articulação da candidatura de Tancredo Neves à Presidência da República pelo Colégio Eleitoral. As frentes de luta não foram substituídas; acumularam-se. Com a mesma desenvoltura, Rezk transita entre Brasília, Rio, Belo Horizonte e as favelas de São Paulo; entre ministros da Nova República e dirigentes comunitários.
Com a conquista da liberdade de organização partidária, Rezk teve atuação destacada na organização do Partido Comunista Brasileiro, PCB, tendo sido membro do diretório nacional e presidente do estadual.
Era também época da Glasnost e da Perestroika. Com o anti-sovietismo daí resultante, e tendo um charmoso PT à sua esquerda, pelo menos midiaticamente, o “partidão” se isolava em miríades de discussões estéreis. O preço seria a derrota eleitoral de seus parlamentares, Goldman e Rezk em São Paulo, apesar das expressivas votações individuais dos mesmos.
Rezk resiste, acreditava que ainda havia espaço para um partido de cunho marxista e programaticamente identificado com as camadas populares. Procurando, no debate teórico e na prática política, a difícil identidade que o distinguisse dos demais partidos de esquerda que proliferavam no período, o PCB amargaria mais derrotas até transformar-se em PPS.
O guerreiro continuará lutando, mas o pensador percebe que o destino político de qualquer partido nas democracias incipientes enfrenta o mesmo dilema: radicaliza o discurso para manter a identidade, mesmo ao custo de não contribuir para o desenvolvimento político do país; ou dialoga, faz concessões e, de alguma forma, cresce e contribui. Mas o faz abrindo mão de alguns pontos programáticos, correndo o risco da descaracterização. Hoje se percebe que todos os partidos – se quiserem ser mais que meros denunciantes das mazelas do sistema – estão sujeitos às mesmas vicissitudes. E, quanto mais intensa e duradoura a fase denuncista, mais decepcionante a pragmatização descaracterizadora.
Essas e outras constatações – como a crescente mercantilização da política partidária – levariam Rezk a concentrar-se mais nos estudos sobre aspectos essenciais da sociedade contemporânea. Em 1992, funda o MHD – Movimento Humanismo e Democracia e, logo depois, o IPSO – Instituto de Pesquisas e Projetos Sociais e Tecnológicos, com o objetivo de estudar essas questões e outras relacionadas a ela.
Dos estudos e debates resultam o manifesto do MHD e a coletânea Revolução tecnológica e os novos paradigmas da sociedade (IPSO/Oficina de Livros, Belo Horizonte, 1994), este com prefácio de Fábio Lucas e artigos de Antonio Rezk, Carlos Seabra, Sérgio Storch, Levi B. Ferrari, Ladislau Dowbor e Paulo R. Feldmann. No ano seguinte seriam lançados os Cadernos MHD em edição mimeografada.
Tais documentos, vistos de hoje, podem ser considerados demasiadamente heterogêneos, mas não se pode negar seu pioneirismo. Outros pesquisadores, mais ligados à universidade, se preocupariam com as mesmas questões muito depois. Nota-se nos documentos a busca da compreensão das transformações sociais e caracterização da nova sociedade com instrumentos de análise igualmente novos. O Manifesto do MHD chega a ser contundente e, para muitos, demasiadamente ousado, quando afirma:
“… estamos convencidos de que os dois paradigmas “clássicos” que vinham sendo usados para se estudar e analisar a sociedade moderna, como também para apresentar as soluções para os seus grandes problemas – o “marxista-leninista” e o “neoliberal” –, estão falidos e não respondem mais às exigências dos novos tempos e das novas realidades.”.
Com mais afinco que os demais “humanistas”, Rezk segue com suas pesquisas, palestras, debates e publicações aperfeiçoando os conceitos acima delineados. Para ele, o marxismo, a mais avançada explicação do capitalismo, encontrava suas limitações numa visão centrada na Europa e num determinado estágio do sistema. Isso teria levado o grande pensador alemão e a maioria de seus seguidores ao elogio da expansão mundial do capital na certeza de que a mesma pavimentaria o caminho para o socialismo. Assim, o marxismo, como os demais sistemas explicativos, estaria circunscrito à civilização do trabalho, a ser superada pela do conhecimento, como veremos no transcorrer desta obra.
Para provar suas teses, Rezk revisita a História e questiona a primazia da luta de classes como motor da mesma. Na melhor das hipóteses, ela estaria no mesmo patamar da luta entre clãs, etnias, Cidades-Estado, Impérios, Estados nacionais. Conseqüentemente, são múltiplos os fatores que explicam as grandes transformações sócio-históricas. É o primado do conhecimento que dá forma aos sistemas de dominação e suas mudanças, uma vez que, em muitos casos, é anterior e determinante em relação ao avanço das forças produtivas. Os povos mais desenvolvidos cientifica e tecnologicamente também haverão de impor-se econômica e militarmente sobre os demais.
A questão, cara ao marxismo, de que as condições materiais de subsistência condicionam as relações sociais, os valores, as instituições, numa palavra, a cultura imaterial, não será negada por Rezk. Mas se transforma para ele num dilema como aquele do que veio antes, se o ovo ou a galinha. A partir de alguma indefinível gênese, o conhecimento, para Rezk, passa a ter desenvolvimento autônomo, e, ainda que umbilicalmente ligado ao desenvolvimento material da sociedade, terá precedência sobre o último, exercendo, pois, maior influência na dinâmica social.
Dentro de cada sociedade, será a apropriação do conhecimento o fator preponderante da estratificação social. Na antiga China imperial, por exemplo, apenas os filhos dos mandarins podiam aprender a ler e escrever, forma de manter o domínio deste segmento sobre os demais.
Se a apropriação restrita do conhecimento é fator causal de dominação, apenas a socialização do mesmo pode ser libertadora. A partir deste axioma, Rezk propõe a sociedade humanista, aquela na qual o saber é igualmente acessível a todos através de processos sociais como a educação e a informação, entre outros.
Tais conceitos, aqui por demais resumidos, estão melhor explanados neste livro, bem como no anterior A Revolução do Homem e, ainda, em muitos artigos.
Cabe lembrar que, com a mesma paixão que se dedicou a pesquisas de antropologia política, Rezk entregou-se ao estudo das questões nacionais, desde as relações entre países centrais e periféricos até ao atual sistema imperial, com destaque tanto para as vulnerabilidades quanto as possibilidades da nação brasileira.
Em tempos do apogeu da ideologia neoliberal entre nós, alardeada à exaustão por uma mídia comprometida com os interesses ligados à abertura dos mercados e às privatizações que ocorriam, irresponsavelmente, a cada semana, Rezk e o MHD lançam seu Manifesto e realizam dois “Encontros sobre a Causa Nacional” em São Paulo (1997) e Campinas (1998). Deles resultaram duas coletâneas: A Causa Nacional (Ed. Senac, SP, 1998) com artigos de Adriano Amaral, Antonio Rezk, Darc Costa, Fabio Lucas, Levi Bucalem Ferrari, Luiz Gonzaga Belluzzo, Luiz Toledo Machado Marcos Del Roio, Nilson A. de Souza, Paula Beiguelman e Sérgio Xavier Ferolla; e A Guerra do Brasil (Textonovo, SP, 2000) com novos artigos dos autores já citados e ainda: Adalto Barreiros, Fernando C. de Sá e Benevides, Geraldo L. Nery da Silva, Nelsimar Moura Vandelli e Williams Gonçalves. Participaram ainda dos encontros outros pesquisadores de renome como João Manoel Cardoso de Mello, Carlos Estevam Martins, Bautista Vidal, Fernando Siqueira e Milton Santos. Foi este último, um dos maiores geógrafos brasileiros de todos os tempos, quem, não conhecendo pessoalmente Antônio Rezk até então, afirmou que comparecera ao debate por que fora convidado por ele, “pessoa cujo nome sempre lhe merecera a maior admiração.”
Nesses livros e encontros, os autores discutem, através de visões e ênfases diversas, as causas da dependência econômica e cultural e da vulnerabilidade estratégica do Brasil em relação ao sistema mundial de dominação. Apontam-se as alternativas para um desenvolvimento autônomo com maior distribuição da riqueza, bem como medidas para a reconstrução de um Estado Brasileiro livre e soberano.
Logo depois, através do IPSO, Rezk dedicou-se também a projetos que visavam à integração da América do Sul. Coordenou eventos supranacionais de militantes e intelectuais do subcontinente em trabalhos que enfatizavam a integração dos movimentos sociais e culturais atuantes na região.
Aqui concluo o retrato sucinto da gênese e das contingências de onde emerge a contribuição elaborada e inovadora de Antonio Rezk ao pensamento psicossocial e político. E expressas neste livro, através de um humanismo renovado e indispensável ao entendimento de nossa era e suas tendências. Não há no livro receitas simples, mas um diagnóstico profundo e o apontar de caminhos que devem levar a humanidade à auto-emancipação e a patamares mais avançados de civiliza
Levi Bucalem Ferrari
São Paulo, 03 de outubro de 2010.