Fuga em Espelhos
Guiomar de Grammont
Uma mulher, um homem, o binômio perfeito, completação no antagonismo e, portanto, possibilidade de processo: amor, vida… Esta a comportar sua negação própria, a morte. Daí amor e vida, vida e morte, amor e morte. Isso se o suposto casal vivesse isolado, num improvável Jardim do Éden. E nada teria a menor graça.
O mesmo cabe se fossem primitivos, nômades ou assemelhados, o sexo a ocorrer apenas no cio da fêmea, como entre animais, ou por imposição do homem, fisicamente mais forte. Menos de dois minutos entre a penetração e o orgasmo. Este unilateral quase sempre.
Foi preciso o surgimento da escrita para que tivéssemos o registro da poesia, do discurso, da epopéia, da saga, das ilíadas, eneidas e lusíadas, entre as demais basilares manifestações da literatura. Registro que, certamente, foi condição para sua divulgação, intercâmbio e desenvolvimento. Assim também, o surgimento do excedente econômico e tudo que dele deriva, trará brutal impacto na dinâmica em que se contorcerá o original binômio homem-mullher.
Será ele desde então objeto e sujeito, ponto de partida e núcleo das mais belas histórias do mundo.
Eis o rapto de Helena provocando a guerra entre troianos e gregos, as brigas entre famílias levando os jovens Romeu e Julieta ao suicídio. E tantas outras que, se realidade ou ficção não importa, as lendas terão mais duração que as descobertas científicas. Registram, estabelecem e perpetuam os arquétipos do comportamento humano.
Entre os sexos, onde antes só poderia existir amor – no mínimo como exigência da perpetuação da espécie – passam a interferir os jogos que moverão mulheres e homens em direção às mais erráticas buscas: riqueza, poder, fama… Amor desde então a ser intermediado por infinitas possibilidades de conflito que ora o reprimem, ora o aguçam, ora aguçam porque reprimem. Estão aí as origens das sensações como o ciúme, a paixão, a traição, além das obsessões tão inumeráveis quanto as taras, os fetiches, as preferências mais esdrúxulas.
Nesse conturbado mar de sentimentos movem-se as personagens desse instigante romance Fuga em Espelhos de Guiomar de Grammont. E coloque turbulências nesse mar: maremoto. O excedente já não é o mesmo da época de Tróia ou da renascentista Verona. É incomensurável e absurdamente concentrado como o são suas manifestações: poder, riqueza… As distâncias sociais impossibilitam o conhecimento das feras que sexualmente se atraem, mistério que exacerba a curiosidade e que, enquanto não se decifra, tenta, desesperadamente se resolver na cama, na posse carnal, inútil, de quem se faz Esfinge. E devora.
Todavia, enquanto do processo não se conhece a inutilidade, experimentam-se alguns paroxismos da paixão, até à loucura, até à negação, tudo precisa e magnificamente descrito pela autora numa linguagem que contempla, competentemente, tanto o caprichoso bordado barroco e seus anjos de expressões ambíguas quanto o golpe rápido, preciso, e o ritmo acelerado da moderna prosa. Sem concessões, é bom frisar, a qualquer maneirismo.
Cada qual a seu tempo, o barroco e o moderno servem adequadamente às diferentes situações, ritmos e paisagens que o enredo oferece. As personagens, poucas e muito bem construídas, parecem imagens espelhadas de si mesmas, contraditórias naquilo em que se assemelham. Movimentam-se elas num contexto complexo que compreende o mundo do poder, com sua glamourosa permissividade, e o da miséria, com suas preocupações comezinhas, ambos próximos e a se entrelaçarem como anéis de uma mesma e inquebrantável corrente. Colocadas num período histórico de rápidas e mal resolvidas transições políticas, elas trazem na memória o peso da repressão do período militar tanto quanto sugerem, no presente, a desconfiança de que pouco mudou. E que este pouco foi permitido apenas para melhor disfarçar o mesmo arcaico e injusto sistema de dominação.
Por outro lado, se o drama policialesco, como o afirma Fábio Lucas, é apenas “… encadeamento imaginoso do jogo de espelhos com que se constrói a comédia de enganos e se propõe o triunfo final da ordem…” Fuga em Espelhos foge do engodo. Ao contrário, utiliza-se de alguns dos elementos típicos do gênero policial – um assassinato e, a partir dele, uma trama repleta de enigmas – para desnudar essa mesma ordem, denunciando-lhe as mazelas e a putrefação psíquica de seus mandantes.
O sistema, contudo, é inegavelmente poderoso, sedutor e aparentemente imutável o que induz muitos a se deixarem cooptar, quiçá a se transformarem em renovados agentes de sua perpetuação. Entre estes, mulheres que, como Capitus cibernéticas, vingam-se da atávica dominação masculina através de novas formas de dissimulação, ora urdidas na multiplicidade de espelhos que um mundo virtual, dominado pelas aparências, nos oferece.
Que não se apaixone o leitor por qualquer personagem deste envolvente romance de Guiomar de Grammont. “Olhares de ressaca”, já nos advertiu Machado de Assis, sempre prenunciam tragédias. Principalmente se multiplicados ao infinito por um jogo de espelhos.
Resenha publicada no site Leia Livro em 2008.