Discurso Urbano
Izacyl Guimarães Ferreira
Ninguém tem certeza, mas o mais provável é que o homo sapiens tenha perambulado como nômade por mais de 250 mil anos até que descobriu que a semente da fruta que comera germinou árvore idêntica àquela de onde colhera os frutos. Também que alguns animais, até então mera caça, poderiam ser criados e procriar-se em cativeiro, fornecendo-lhe (ao homem) outros produtos e serviços além da carne.
Pronto. Estavam plantadas as sementes da primeira e maior revolução que a humanidade conheceria, a revolução agrícola. Já não seria necessário vagarmos pelo desconhecido como as outras feras em busca de comida, água e abrigo. Paremos por aqui mesmo, ponderou o mais esperto, a safra promete e o gado está a engordar, a fornecer também leite e sua força para o arado e o transporte. Certamente este líder, se homem, foi influenciado por alguma, ou todas as mulheres, cansadas de transportar os filhos, fora e dentro do ventre, pelas inseguranças do mundo.
Erguer abrigos menos provisórios, mais seguros, daí a casa, daí a cidade, daí formas menos incipientes de convivência. Organização social com regras claras, se possível escritas; escritas também as façanhas de nossos lendários heróis, os cânticos usados nos rituais. A cidade nasce com a poesia. E vice-versa.
Passeie pelos séculos e note que as grandes capitais dos impérios orientais constituirão a panela na qual se cozinha a cultura das formações sociais com muito mais pressa e sabor que no campo. Quanto ao ocidente, perceba que a Polis grega é o pilar da civilização. Aproveite e pergunte ao Aristóteles se a História ou a Poesia poderiam ser feitas no campo. Qual é, Mané? Responderia para concluir. E tem mais: Você acha que o Sófocles ou o Eurípedes encenariam aquele teatro sofisticado numa plantação de oliveiras ou pasto de cabras? Eles querem público. E de qualidade.
Na seqüência, o Império Romano urbanizaria o mundo conhecido.
E foi com sua queda que a barbárie tomou conta. Pelo menos no ocidente regredimos muito ao esvaziar as cidades e voltar para o campo onde se concentraria, por muito tempo, o poder de senhores feudais e da Igreja. Tempo de reis e nobres analfabetos e bestiais. Tudo bem para a Igreja daquele tempo, a dominar pela superstição e medo do inferno. E algumas bruxas para assar de vez em quando. Chegaram a milhões.
Enquanto isso, à sombra do castelo ou longe dele, nos portos e confluências de rios, as cidades renasciam, fênix civilizatória. Artesãos, comerciantes e muitos outros fogem para lá para se verem livres do jugo feudal. Gênova e Amsterdã inventam barcos e bancos; Veneza, a República; e Florença o Leonardo, o Michelangelo, o Galileu, o Maquiavel, o Dante… Nem precisava tanto.
Cervantes põe a pá de cal nos últimos valores feudais, tratando-os com ironia e malícia. Através dele, o poder burguês inventou sua forma de manifestação predileta, o romance, aquela coisa ambígua e urbana se comparada às gestas que elogiavam heróis e príncipes sempre cristãos.
A cidade volta a ser, e será até hoje, o espaço da reconstrução civilizatória. E não só o do triunfo do pensamento e viver burgueses como o de outras teorias que cobram mais efetividade na promessa de liberdade, igualdade e fraternidade. Então era só a formal? Queremos mais, busca-se a superação, iluminismo, romantismo, idealismo, materialismo. Sempre na cidade, a ponto de Marx ter usado a expressão “idiotia rural”.
Chega. Agora é curtir a poesia urbana de Izacyl Guimarães Ferreira, refinadíssimo poeta de trovar claro, amante apologético da civilização, da cultura e da liberdade. Noutras palavras, da cidade e de sua melhor poesia.
São Paulo, 16 de outubro de 2007.
Resenha publicada no site Leia Livro em 2008.
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