Em doze de outubro de 2005 a UBE perdeu seu vice-presidente, Antônio Rezk. Também perdeu o Brasil um grande patriota e o mundo um cidadão exemplar, em ambos os casos daqueles que se contam nos dedos.
A primeira notícia que tive de Rezk foi quando ele se candidatou a vereador pela primeira vez, seu nome me foi passado por companheiro de confiança com a dica, quase uma senha: nosso candidato é este. Explico: Vivíamos ainda sob o regime militar e as propagandas eleitorais censuradas pouco ou nada esclareciam.
Comunistas, socialistas e democratas de todos os matizes abrigavam-se sob o amplo guarda-chuva do MDB – Movimento Democrático Brasileiro. As conversas políticas restringiam-se a companheiros conhecidos, e era preciso saber com os mais informados quem melhor representava nossa visão de mundo. Naquela eleição, Antônio Rezk.
A participação política limitadíssima – partidos reduzidos a dois, e bem controlados pelo regime – levaria alguns opositores a concentrarem seus esforços no movimento comunitário. A luta de resistência, acreditávamos, envolveria a população a partir de suas carências mais imediatas: escolas, creches, postos de saúde, transportes, infra-estrutura urbana. Em São Paulo proliferam as sociedades amigos de bairro; Rezk à frente, organizaria quase uma centena delas e o processo haveria de culminar com os Conselhos Municipal e Estadual dessas sociedades, fundados e presididos pelo parlamentar.
A esse movimento se juntariam urbanistas de renome, além de líderes comunitários e políticos. O guerreiro da cidade é também seu pensador e poeta. Em livro urdido à época, mas publicado apenas em 1986, Rezk sentencia:
“… e a cidade deve ser bela. Portanto, deve ser boa. Deve ser justa. A beleza é sempre produto de um justo equilíbrio, da correta composição das cores, dos sons, da luz, de movimento e de liberdade. Esta é a cidade que eu idealizo: profundamente humana e socialmente justa. Rica: socialmente rica”. (Rezk – Cidade, Novos Rumos, SP, 1986).
Guerreiro incansável
Eleito deputado estadual, o trabalho de Rezk continua e inclui a defesa dos presos políticos, o Estado de direito, as liberdades democráticas, anistia, eleições diretas. O guerreiro incansável participa de todas as frentes de luta representando, segundo seu ex-colega, Aluysio Nunes, o “ponto de encontro dos demais parlamentares da oposição autêntica”, a saber, aquele que entre os pares, dirimia as dúvidas, arbitrava democraticamente as divergências, apontava caminhos. Paciência de Jó e sabedoria de Salomão, além da bravura de Aquiles, em reuniões que varavam noites e fins de semana, Antônio Rezk revela-se ao mesmo tempo o líder humilde, o colega fraterno, o amigo solidário, o homem generoso, mas também o guerreiro que não teme falar duro com autoridades civis e militares, não raro enfiando o dedo na cara de alguns quando isso se fazia necessário. Honrava como poucos o mandato que o povo lhe conferira.
Poucos lembram, ninguém diz, mas foi em seu automóvel que Lula fugiu ao cerco que a polícia política lhe montara durante a greve dos metalúrgicos em São Bernardo.
Nos próximos anos Rezk teria participação decisiva na coordenação do movimento pelas Diretas-Já e, logo depois, na articulação da candidatura de Tancredo Neves à Presidência da República pelo Colégio Eleitoral. As frentes de luta não foram substituídas; acumularam-se. Com a mesma desenvoltura, Rezk transita entre Brasília, Rio, Belo Horizonte e as favelas de São Paulo; entre ministros da Nova República e dirigentes comunitários.
Com a conquista da liberdade de organização partidária, Rezk participa da re-fundação do PCB, tendo sido membro do diretório nacional e presidente do estadual. Era também época da glasnost e da perestroika. Com o anti-sovietismo daí resultante e tendo um charmoso PT à sua esquerda, pelo menos midiaticamente, o “partidão” se descaracterizava e se isolava em miríades de discussões estéreis. O preço seria a derrota eleitoral de seus parlamentares, Goldman e Rezk em São Paulo, apesar das expressivas votações individuais dos mesmos..
Rezk resiste, ainda havia espaço, acreditava ele, para um partido de cunho marxista e programaticamente identificado com as camadas populares. Procurando, no debate teórico e na prática política, a difícil identidade que o distinguisse dos demais partidos de esquerda que proliferavam no período, o PCB amargaria mais derrotas até transformar-se em PPS.
O pensador
O guerreiro continuará lutando, mas o pensador percebe que o destino político de qualquer partido nas democracias incipientes enfrenta o mesmo dilema: radicaliza o discurso para manter a identidade, mesmo ao custo de não contribuir para o desenvolvimento político do país, ou dialoga, faz concessões e, de alguma forma, cresce e contribui, mas o faz abrindo mão de alguns pontos programáticos, correndo o risco da descaracterização. Hoje se percebe que todos os partidos – se quiserem ser mais que meros denunciantes das mazelas do sistema – estão sujeitos às mesmas vicissitudes. E, quanto mais intensa e duradoura a fase denuncista, mais decepcionante a “pragmatização” descaracterizadora.
Essas e outras constatações – como a crescente mercantilização da política partidária – levariam Rezk a concentrar-se mais nos estudos sobre aspectos essenciais da sociedade contemporânea, particularmente no que diz respeito à aplicação intensiva de novas tecnologias na produção e suas conseqüências nas relações sociais e na vida política. Em 1992, Rezk organiza com um grupo de intelectuais e militantes o MHD – Movimento Humanismo e Democracia e, logo depois, o IPSO – Instituto de Pesquisas e Projetos Sociais e Tecnológicos, com o objetivo de estudar essas questões e outras relacionadas a ela.
Dos estudos e debates resultam o manifesto do Movimento Humanismo e Democracia e a coletânea Revolução tecnológica e os novos paradigmas da sociedade (IPSO/Oficina de Livros, Belo Horizonte, 1994), este com prefácio de Fábio Lucas e artigos de Antonio Rezk, Carlos Seabra, Sérgio Storch, Levi B. Ferrari, Ladislau Dowbor e Paulo R. Feldmann. No ano seguinte seriam lançados os Cadernos MHD em edição mimeografada.
Tais documentos, vistos de hoje, podem ser considerados demasiadamente heterogêneos, mas não se pode negar seu pioneirismo. Outros pesquisadores mais ligados à universidade se preocupariam com as mesmas questões apenas cinco ou mais anos depois. Nota-se nos documentos a preocupação em entender as transformações sociais e caracterizar a nova sociedade com instrumentos de análise igualmente novos. O Manifesto do MHD chega a ser contundente e, para muitos, demasiadamente ousado, quando afirma:
“… estamos convencidos de que os dois paradigmas “clássicos” que vinham sendo usados para se estudar e analisar a sociedade moderna, como também para apresentar as soluções para os seus grandes problemas – o “marxista-leninista” e o “neoliberal” –, estão falidos e não respondem mais às exigências dos novos tempos e das novas realidades.”
Com mais afinco que os demais “humanistas”, Rezk segue com suas pesquisas, palestras, debates e publicações aperfeiçoando os conceitos acima delineados. Para ele, o marxismo, a mais avançada explicação do capitalismo, encontrava suas limitações numa visão centrada na Europa e num determinado estágio do sistema. Isso teria levado o grande pensador alemão e a maioria de seus seguidores ao elogio da expansão mundial do capital na certeza de que a mesma pavimentaria o caminho para o socialismo. Estaria também o marxismo, como os demais sistemas explicativos, circunscrito à civilização do trabalho, a ser superada pela do conhecimento.
Para provar suas teses, Rezk revisita a História e nega a primazia da luta de classes como motor da mesma. Na melhor das hipóteses, ela estaria no mesmo patamar da luta entre clãs, etnias, Cidades-Estado, Impérios, Estados nacionais. Conseqüentemente, serão outros os fatores que explicam as grandes transformações sócio-históricas. É o primado do conhecimento que dá forma aos sistemas de dominação e suas mudanças posto que é ele anterior e determinante em relação ao avanço das forças produtivas. Os povos mais desenvolvidos cientifica e tecnologicamente também haverão de impor-se econômica e militarmente sobre os demais.
A questão, cara ao marxismo, de que as condições materiais de subsistência condicionam as relações sociais, os valores, as instituições, numa palavra, o conhecimento, não será negada por Rezk. Mas se transforma para ele num dilema como aquele do que veio antes, se o ovo ou a galinha. A partir de uma indefinível gênese, o conhecimento, para Rezk, passa a ter desenvolvimento autônomo, e, ainda que umbilicalmente ligado ao desenvolvimento material da sociedade terá precedência sobre este exercendo, pois, maior influência na dinâmica social.
Dentro de cada sociedade será a apropriação do conhecimento o fator determinante da estratificação social. Na antiga China imperial, por exemplo, apenas os filhos dos mandarins podiam aprender a ler e escrever, forma de manter o domínio deste segmento sobre os demais.
Se a apropriação restrita do conhecimento é fator causal de dominação, apenas a socialização do mesmo pode ser libertadora. A partir deste axioma, Rezk propõe a sociedade humanista, aquela na qual o saber é igualmente acessível a todos através de processos sociais como a educação e a informação, entre outros.
Tais conceitos, aqui por demais resumidos, estão explanados em alguns artigos e no livro A Revolução do Homem (Textonovo, SP, 2002). Rezk deixou-nos também um ensaio inédito, ora em fase de revisão por Marcos A.Velloso, no qual o autor certamente mais esclarece e aprofunda.
Brasil livre e soberano
Cabe ainda lembrar que, com a mesma paixão que se dedicou a estas pesquisas de antropologia política, Rezk entregou-se ao estudo das questões nacionais, desde as relações entre países centrais e periféricos até ao atual sistema imperial, com destaque tanto para as vulnerabilidades quanto as possibilidades da nação brasileira.
Em tempos do apogeu da ideologia neoliberal entre nós, alardeada à exaustão por uma mídia comprometida com os interesses ligados à abertura dos mercados e às privatizações que ocorriam, irresponsavelmente, a cada semana, Rezk e o MHD lançam seu Manifesto e realizam dois “Encontros sobre a Causa Nacional” em São Paulo (1997) e Campinas (1998). Deles resultaram duas coletâneas: A Causa Nacional (Ed. Senac, SP, 1998) com artigos de Adriano Amaral, Antonio Rezk, Darc Costa, Fabio Lucas, Levi Bucalem Ferrari, Luiz Gonzaga Belluzzo, Luiz Toledo Machado Marcos Del Roio, Nilson A. de Souza, Paula Beiguelman e Sérgio Xavier Ferolla; e A Guerra do Brasil (Textonovo, SP, 2000) com novos artigos dos autores já citados e ainda: Adalto Barreiros, Fernando C. de Sá e Benevides, Geraldo L. Nery da Silva, Nelsimar Moura Vandelli e Williams Gonçalves. Participaram ainda dos encontros outros pesquisadores de renome como João Manoel Cardoso de Mello, Carlos Estevam Martins, Bautista Vidal e Milton Santos. Foi este último quem, não conhecendo pessoalmente Antônio Rezk até então, afirmou que comparecera ao debate por que fora convidado por ele, pessoa cujo nome sempre lhe merecera a maior admiração.
Nesses livros e encontros, os autores discutem, através de visões e ênfases diversas, as causas da dependência econômica e cultural e da vulnerabilidade estratégica do Brasil em relação ao sistema mundial de dominação. Apontam-se as alternativas para um desenvolvimento autônomo com maior distribuição da riqueza, bem como medidas para a reconstrução de um Estado Brasileiro livre e soberano.
Em seu artigo “A Reconstrução da Nação” no livro A Guerra do Brasil, Rezk afirma:
“Qualquer projeto estratégico de um Brasil autônomo, soberano, terá que se confrontar na sua movimentação com um quadro crítico de relações internacionais em contínua transição. Com certeza, no século XXI, a geopolítica construirá uma nova cartografia dos povos. O Brasil poderá estar nela como uma grande potência, ou poderá compor parte dessa cartografia, contribuindo, com a sua fragmentação, para aumentar o número das pequenas nações sul-americanas. A ação dos brasileiros, na próxima década, poderá determinar para qual tendência caminhará o Brasil.”
Ultimamente, através do IPSO, Rezk dedicava-se à projetos que visavam a integração da América do Sul. Coordenou eventos supra-nacionais preparatórios de um grande encontro de pensadores do sub-continente. Diferente das iniciativas de alguns governos sul-americanos, inclusive o brasileiro, mas não contra elas, Rezk e o IPSO dariam ênfase à integração dos movimentos sociais e culturais que operam no sentido da necessária integração.
Eis, em resumo, um pálido retrato do inesquecível companheiro e amigo Antônio Rezk, possível de ser traçado no curto espaço deste editorial. Certamente há muito mais a dizer sobre este grande brasileiro e humanista. Certa destas qualidades e grata à dedicação de Rezk à UBE, a diretoria da entidade decidiu dar o nome de Antônio Rezk à sua sala de reuniões e, futuramente à Biblioteca que estamos organizando.
Editorial da Revista O Escritor, nº111, out.2005.