Moscas
José Roberto Melhem
Entre nós as boas novidades editoriais são ofuscadas, ora pelo excesso de publicações, ora pelo errático incensar que a mídia dedica ao que nem sempre, quase nunca, é o melhor. À primazia dos livros de auto-ajuda e aos técnicos e terapêuticos, seguem-se os místicos e esotéricos vindo muito depois a ficção literária. Nela predominam de longe as traduções de originais produzidos alhures, nas metrópoles, seguidas de nossos clássicos apenas porque são objeto dos concursos vestibulares, vendem mais. A tal ponto que o leitor menos afeito terá sempre a impressão que literatura é coisa de estrangeiros ou do passado.
Entre os novos, a mídia excetua alguns nomes, escolhidos, ou melhor, ungidos, por alguma grande editora, sabe-se lá por quais critérios. A descoberta de autores novos com qualidade, se dá assim como que por acaso, depois de muita leitura dispensável. É garimpar o diamante na imensidão do cascalho.
Mas o esforço vale a pena quando se encontra algo como Moscas (São Paulo, Página Viva Ed., 2001) de José Roberto Melhem. Estão ali dispostos sete contos, a maioria longos, bem ao contrário da predominante tendência à narrativa telegráfica. Sem concessões a esse como a qualquer outro modismo, Melhem desfila tramas simples, sem maiores mistérios, a não ser os muitos que se escondem por trás do mais banal dos cotidianos. Isso não exclui a presença do fantástico, como no conto Mariana, nem do absurdo, em Noitada, ou do conteúdo fortemente social de Moscas e Retirantes.
Ficam assim os pontos fortes de Melhem concentrados na linguagem e estrutura narrativa. Quanto à primeira, dir-se-ia que o autor faz a original mistura do coloquial com algo que se poderia chamar de gongórico-jurídico, este, entretanto, tratado com hábil auto-ironia. Para se ter uma idéia aproximada, imagine-se um grupo de amigos, estudantes ou bacharéis de Direito, de preferência, dirigindo-se um ao outro na segunda pessoa do plural num boteco de quinta categoria. E mais, com todas as pompas que o jargão jurídico – e sua preferência pela ordem inversa – proporcionam. Intercalem-se aqui ou acolá, expressões coloquiais, intimistas e até algum bem ajustado palavrão. Tudo disposto numa sintaxe ousada, a pontuação tradicional substituída pelo ritmo do pensamento, no bom e fluido português do Brasil.
Melhem nos brinda também com inesperadas mudanças de narrador, nunca anunciadas, mas feitas com tal habilidade que, ao invés de simplesmente complicar, melhor explicam, através da convocação de outros pontos de vistas, e tornam a narrativa mais dinâmica. As personagens dialogam entre si tanto no plano factual, como também em pensamentos. Quem conversa sozinho tem sempre um interlocutor imaginário. E como este também pensa, certamente terá outro interlocutor e assim infinitamente.
Revelar tudo isso sem perder nem clareza nem elegância já seria o suficiente, mas Melhem aí não para. Narradores assim multiplicados dialogam também com seu alter ego, sua memória, desejos, frustrações. São, portanto, vários planos superpostos de diálogos, a resultarem em narrativas paralelas que, quando menos se espera, se encontram. Como o fazem suas similares matemáticas no infinito.