Artigo de Aldo Pereira, publicado na Folha de S. Paulo em 22 de abril de 2010.
No século 16, países europeus que exploravam riquezas da América reprimiam com rigor a ação de piratas baseados em ilhas e costas continentais do Caribe: execução sumária ou condenação à forca. À primeira vista, história de mocinhos e bandidos — ou seria de bandidos e bandidos?
Logo após ter descoberto o que supunha ser a Índia, Cristóvão Colombo (1446?-1506) estabeleceu modelo de conduta para “los conquistadores”: tortura sistemática de nativos para obter deles “segredos” de minas e garimpos de ouro, e para escravizá-los na extração e refino do minério. A recalcitrantes, espada civilizadora finamente forjada em Toledo.
De sua parte, a marinha britânica, ocupada então com tráfico de escravos africanos, comissionou “privateers” (navios corsários) para pirataria seletiva contra galeões espanhóis carregados desse ouro. Frances Drake (1540?-1596) e Henry Morgan (1635?-1688), célebres corsários, receberiam pela patriótica missão o título honorífico de “Sir”.
A distinção entre piratas, conquistadores e corsários continua ambígua. Sem explicitar nomes, o principal executivo da UMG (Universal Music Group) vocifera contra engenhocas do tipo iPod: “Repositórios de música roubada!”. Também se têm visto e ouvido na mídia proclamações de que baixar, copiar ou comprar músicas e programas sem pagar royalties é “pirataria”. Com a forca fora de moda, detentores de “propriedade intelectual” reclamam pelo menos cadeia para os “piratas”.
“Propriedade intelectual” é campo de disputa aonde convergem três interesses legítimos e interdependentes, mas conflitantes: 1) o dos autores, sem os quais não teríamos inovação e avanço na cultura: 2) o de firmas como editoras, gravadoras e programadoras, que assumem riscos lotéricos de produção, distribuição e promoção (em média, dos mais de 40 livros que a Random House edita por semana, 35 dão prejuízo ou lucro zero): 3) o direito público à liberdade de expressão, ao saber e ao cultivo do espírito pela arte.
Sem este terceiro direito, a vida cultural estagnaria, porque se realimenta do que ela própria produz. Nenhuma criação é absolutamente original, mas produto da tradição cultural do meio em que o autor se forma. Por isto, direito autoral deveria constituir não propriedade, mas apenas licença de usufruto econômico exclusivo durante certo prazo, como a concedida a patentes. Em criações de pessoa física, tal licença poderia ser vitalícia, embora não hereditária.
O que tem ocorrido, porém, é progressiva usurpação do direito público em favor da “propriedade intelectual”, sobretudo corporativa. Isto é, acumulação de privilégios desfrutados por cartéis e outros grupos que em geral os têm obtido pelo suborno sistemático de legisladores e burocratas, prática mais elegantemente referida como lobby (“ante-sala”).
No reinado de Pedro I, toda obra literária caía em domínio público 10 anos após a publicação. O regime republicano dilatou o privilégio para 50 anos contados do 1º de janeiro subsequente à morte do autor (Lei Medeiros e Albuquerque, nº 496, de 1898). Esse prazo é hoje de 70 anos. Todas as mudanças legais introduzidas desde 1898 têm ampliado o direito individual e corporativo de exploração econômica das obras à custa de progressiva restrição do domínio público, isto é, em prejuízo da dimensão social da cultura.
A involução legal brasileira reflete a globalização dos mercados da “propriedade intelectual”. Acordos e convenções que conferem direito proprietário de corporações a criações culturais têm sido extorquidos a governantes covardes e/ou venais do mundo subdesenvolvido, estratégia que se completa pelo citado suborno legislativo. Colonialismo por outros meios.
O abuso é mais nítido na exploração autoral póstuma, onde o Congresso americano, creia, se tem mostrado ainda mais venal que o brasileiro. Segundo Lawrence Lessig, professor de direito da Universidade Stanford, à medida que o Camundongo Mickey envelhece e se arrisca a cair em domínio público, o lobby da Walt Disney obtém mais alguns anos de sobrevida para o respectivo copyright. Em 1998, o Congresso estendeu a proteção póstuma a 95 anos: no caso de Mickey, até 2061. Lessig enumera 11 extensões semelhantes concedidas nos últimos 40 anos em favor da indústria de som e imagem.
Nesse drama, decerto lhe seria difícil escolher entre o papel de conquistador e o de pirata. Resigne-se, então, ao do submisso e espoliado nativo.
Aldo Pereira (aldopereira.argumento@uol.com.br), 78, é ex-editorialista e colaborador especial da Folha.
COMENTÁRIOS ENVIADOS POR DANIELA COLLA A ALDO PEREIRA:
Comentários ao artigo do Sr. Aldo Pereira
Relativamente ao artigo intitulado “Piratas e Conquistadores”, de autoria do Sr. Aldo Pereira, publicado no jornal Folha de São Paulo, no dia 22/04/2010, gostaria de tecer algumas considerações importantes:
1. A propriedade intelectual é um direito fundamental garantido pela Constituição Brasileira de 1988, pela Lei 9.610 de 1998 (Lei dos Direitos Autorais), pelo Código Penal e pela Convenção de Berna, da qual o Brasil é signatário, dentro outros acordos e tratados internacionais em vigor.
2. As ditas “proclamações” de que a cópia, o “download” de obras musicais, programas e sua compra sem o pagamento dos royalties devidos são atos de pirataria, em verdade, são simples constatações da configuração do delito constante no artigo 184 e parágrafos do Código Penal Brasileiro, que prevê penas privativas de liberdade para as violações dos direitos autorais e conexos e/ou aplicação de multa.
3. A propriedade intelectual é fruto do trabalho criativo dos autores e está inserida na Constituição no rol dos direitos e garantias fundamentais, em seu artigo, 5º incisos XXVII e XXVIII. Por outro lado, no artigo 7º da referida Carta Magna é proibida a “distinção entre trabalho manual, técnico e intelectual ou entre profissionais respectivos.” Portanto, seria, no mínimo, injusto, em um país cujo regime é democrático, remunerarem-se todos os profissionais, exceto os intelectuais. Suprimir-se tal direito é regredir, involuir. Defensores do compartilhamento livre no mundo digital apregoam a necessidade de se democratizar o “acesso à cultura” e hasteiam a bandeira importada dos EUA das licenças flexíveis do tipo “Creative Commons” em detrimento dos direitos dos criadores que, usurpados, espoliados, produzirão cultura gratuitamente. Inadmissível!
4. Ressalte-se ainda que o direito de herança (assim como o de propriedade) é constitucionalíssimo e está previsto no supramencionado artigo 5º da Constituição, inciso XXX. Portanto, nada há de ilegal na transmissão hereditária de direitos intelectuais. Curioso é que se um pai deixa um imóvel para o filho, a título de herança, ninguém discute sobre a transmissão dos direitos e a respectiva fruição do bem após sua morte, mas se deixar bens intelectuais é diferente… Dois pesos, duas medidas.
5. Os autores não criam somente para expressar seu espírito artístico ou por “hobby” ou por prazer, a arte também é trabalho! As pessoas se esquecem das milhares de vidas que estão no “backstage” dos direitos autorais violados e que dependem desta remuneração para viver dignamente.
6. Precisamos ajustar nossa legislação às novas tecnologias do mundo digital globalizado, mas com cautela, sem o tapa-olho da criação de um supra direito de acesso “pirata” à cultura, saqueando as obras (a alma) de nossos autores e sepultando a arte!
Daniela Colla
Advogada Especializanda em Direito da Propriedade Intelectual, cantora e compositora.
RESPOSTA DE ALDO PEREIRA A DANIELA COLLA:
Prezada doutora
Obrigado pela atenção dada a meu artigo e pela disposição de contestá-lo. É sempre saudável para o comentarista ver testada a validade da argumentação em que baseia sua análise.
Evidentemente divergimos, porque noto em seus argumentos o vício da falácia, recurso aliás comum da advocacia. Essencialmente, seu argumento de que a “pirataria” é ilegal porque a lei a proíbe consuma a falácia da tautologia: é ilegal por ser ilegal.
Pretende com isto desviar atenção do ponto central de meu artigo, que em nenhum trecho discute a legalidade da “propriedade intelectual”. Historicamente, todos os esquemas de exploração social têm tido proteção legal, visto a lei ser feita — ou comprada — pelos que têm poder para beneficiar-se dela.
Denuncia minha matéria, além disso, os efeitos anti-sociais e os procedimentos pelos quais tantos privilégios afluíram à legislação do direito autoral. Exibe assim um de tantos outros exemplos da corrosão dos ideais republicanos pela prática indecente do lobby (leia: suborno legalizado) e pela usurpação da soberania popular pelo estamento político.
Ademais, meu artigo não propõe nem sanciona a desobediência civil (apesar da imponente superioridade moral das vítimas dessa iniquidade legal). Apenas demonstra que tais leis não equilibram todos os interesses, pois desprezam o do público e entorpecem a fruição livre do patrimônio cultural da sociedade.
Reconheça também que “pirata” não é termo técnico. Não figura nem na Constituição nem mesmo na vergonhosa Lei 9.610. É mero recurso de retórica hiperbólica com vistas a desqualificar moralmente aquele que se opõe aos abusos da “propriedade intelectual”.
Em suma, temos aí a falácia do ataque “ad hominem” (que eu preferiria atualizar para “ad personam”, mas que, enfim, preserva a forma original no ofício da senhora). O mesmo se diga de sua referência a “tapa- olho” e a outras hipérboles como “sepultamento da arte”. Hum, mas quem serão os coveiros?
Finalmente, apenas para lhe favorecer apreciação mais lúcida de meus argumentos, julgo útil lembrar que meu artigo não é contrário tampouco ao direito dos autores nem ao dos editores; apenas contra os abusos anti-sociais que o conceito de “propriedade intelectual” instituiu. Muito menos oponho interesse pessoal meu ao de autores e editores. Sem patrão nem empregados, tenho vivido nos últimos quarenta anos exclusivamente da remuneração direta de meu ofício de escrever.
Meus ganhos não se comparam, imagino, às generosas provisões que as multinacionais da “propriedade intelectual” reservam em seus orçamentos para cobrir honorários advocatícios e remunerar seus lobbies. Mas valem, esses meus royalties comparativamente modestos, pelo bônus da confortável posição moral que assumo em artigos como este, para o qual a senhora me honrou com tanto tempo e esforço de contestação.
Cordialmente,
AP