Michael Löwy
A relação entre Weber e Marx não é um tema tratado de forma sistemática no
livro, mas seu autor se insurge contra a tendência – frequente na bibliografia – de
apresentar Weber como um “porta-voz do antimarxismo” – argumento rejeitado já pelo próprio Weber, que se dissociava da tentativa de autores como Hans
Delbrück de interpretar sua análise do papel da ética protestante na origem do
espírito do capitalismo como caso exemplar de “idealismo antimarxista”. O que
interessa a Weber, observa Cohn, são as “afinidades eletivas” entre calvinismo e
capitalismo: a relação entre ambos não é unívoca e pode ser lida nos dois sentidos
possíveis19. O que Marx e Weber têm em comum é a posição central atribuída aos
problemas da sociedade capitalista, “com a diferença de que num caso isso conduz
a uma crítica revolucionária e, no outro, a uma crítica marcada pela resignação”20.
Entretanto, apesar dessas convergências, Cohn está convencido de que entre
Weber e o materialismo histórico “não há, em princípio, conciliação possível, apesar dos esforços de um Merleau-Ponty em construir um ‘marxismo weberiano’
em suas Aventuras da dialética”. Como dar conta, então, da tentativa de Lukács
em História e consciência de classe (principal argumento de Merleau-Ponty)? E
Cohn relativiza sua afirmação um pouco taxativa, acrescentando: “Como de há-
bito, a história é mais complexa; Lukács que o diga”21. Assim, fica aqui também a
pergunta em suspenso: em que medida o livro de Gabriel Cohn tem a ver com o
“marxismo weberiano”?
Para concluir este breve recorrido que não tem nada de exaustivo, não podemos deixar de mencionar um livro que se propõe a discutir especificamente a
questão do “marxismo weberiano”: Marx, Weber e o marxismo weberiano (2003),
de Francisco Teixeira e Celso Frederico. O livro está dividido em duas partes: a
primeira, redigida por Francisco Soares Teixeira, propõe uma leitura comentada
de A ética protestante que busca comparar Weber e Marx, apontando tanto as
convergências como os desacordos entre os dois pensadores (com mais destaque às divergências). O ensaio mereceria uma discussão aprofundada que escapa
aos limites deste prefácio. Muitos dos comentários do autor são pertinentes; meu
principal desacordo é com relação a uma tese de Fredrick Tenbruck, que Teixeira
parece assumir: para Weber, “a água da história é conduzida pelo moinho das
19 Ibidem, p. 117 e 166.
20 Ibidem, p. 118.
21 Ibidem, p. 205.
14 A JAULA DE AÇO
ideias”. A imagem me parece infeliz, já que é a água que faz mover os moinhos, e
não o contrário… Mas a tese segundo a qual, para Weber, são as ideias que “movem” a história – ou, no caso de A ética protestante, “as ideias são as parteiras do
capitalismo” – não dá conta da complexidade do método de Weber22.
Mas minhas principais objeções referem-se à segunda parte, redigida por Celso
Frederico, sob o título “Marxismo weberiano”. Trata-se de uma interessante polêmica contra os autores dessa corrente. A primeira dificuldade que vejo nesse
capítulo é que Frederico define como “marxistas weberianos” não apenas Lukács
e Adorno/Horkheimer – o que é legítimo –, mas também autores que muito pouco
têm a ver com Weber: Lucien Goldmann, que tratava Weber como um positivista
vulgar, e Guy Debord, que provavelmente nunca leu Weber. É verdade que os
dois foram discípulos do Lukács de História e consciência de classe, mas isso não
é suficiente para caracterizá-los como “weberianos”. O argumento principal de
Celso Frederico é que esses autores estão em contradição com Marx. Em vários
aspectos, não deixa de ter razão, mas em outros isso me parece equivocado. Por
exemplo, a crítica da quantificação, comum a todos esses autores, assim como
a Weber, seria um tema nostálgico e romântico que nada teria a ver com Marx.
Será? Afinal de contas, não é Marx que, no Manifesto Comunista, manifesta sua
indignação diante do fato de a burguesia “ter dissolvido a dignidade pessoal no
valor de troca”? Mais surpreendente é a crítica de Celso Frederico ao conceito de
dominação, que ocupa lugar central no pensamento de Weber e de Adorno: “a dominação, ponto de chegada da teoria de Weber, é para Marx característica das sociedades pré-capitalistas”. No capitalismo, “as articulações puramente econômicas
se impõem a toda a sociedade, obrigando os trabalhadores a ‘livremente’, sem nenhuma coação, venderem sua força de trabalho ao capitalista. Passamos, portanto,
da dominação à exploração”23. Será mesmo que Marx considerava a dominação
como “pré-capitalista”? Nas primeiras páginas do Manifesto Comunista, Marx e
Engels se referem explicitamente à “dominação de classe (Klassenherrschaft)” da
burguesia. Algumas linhas adiante, eles denunciam a “dominação (Herrschaft)
econômica e política da burguesia”. Em outras palavras: contrariamente ao que
seria uma leitura puramente econômica, que só considera a “exploração”, Marx e
22 Francisco Teixeira e Celso Frederico, Marx, Weber e o marxismo weberiano (São Paulo,
Cortez, 2010), p. 139 e 158. Em sua análise de A ética protestante, Teixeira vai utilizar
amplamente o excelente ensaio de Antônio Flávio Pierucci, O desencantamento do mundo:
todos os passos do conceito em Max Weber (São Paulo, Editora 34, 2003).
23 Ibidem, p. 174 e 199.
O MARXISMO WEBERIANO NO BRASIL 15
Engels atribuem um peso considerável à dominação, tanto econômica como política, nos quadros do capitalismo. Aliás, vários de seus mais importantes livros –
O 18 de brumário, A guerra civil na França etc. etc. – são dedicados ao Estado
capitalista como aparelho de dominação de classe.
Certo, todos esses autores – Lukács, Adorno, Goldmann, Debord – são marxistas heterodoxos, que em alguns aspectos importantes se afastam das ideias de
Marx. Mas não seria esse o caso de vários dos grandes marxistas do século XX,
de Rosa Luxemburgo e Antonio Gramsci até José Carlos Mariátegui e Ernesto
Che Guevara? E não é por serem “weberianos”…
* * *
Permito-me aqui uma nota pessoal: fui aluno de Florestan Fernandes e
Fernando Henrique Cardoso na USP da Maria Antonia (1956-1960) e participei
do Seminário do Capital organizado por este último. Fui colega de estudos e amigo de Francisco Weffort e Gabriel Cohn e militei na Liga Socialista Independente
com Hermínio Sacchetta e Maurício Tragtenberg na década de 1950. Sem dúvida
aprendi muito sobre Marx e Weber com meus professores, colegas e companheiros de militância brasileiros. Entretanto, como diz a expressão consagrada, sou o
único responsável pelos eventuais erros, equívocos e mal-entendidos deste livro…
Michael Löwy
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