Se os superlativos absolutos sintéticos existem é para serem usados. Não há pois evitá-los quando estamos diante de um livro como Repórteres, trabalho que merece pelo menos dois deles: originalíssimo e oportuníssimo.
Quanto a originalidade, imagine-se que algum veterano jogador de futebol, dos mais reconhecidos como Pelé, Garrincha, Jairzinho, Zico, Sócrates tantos outros, tivesse a iniciativa de montar a seleção brasileira de todos os tempos ou, já que muitos se foram, pelo menos a das últimas décadas. Resultaria não só num super dream team, teoricamente muito melhor que qualquer equipe em atividade, mas também numa rica e rara troca de experiências quanto a esquemas táticos, estilos de jogo… Imagine-se então que os craques não seriam chamados a jogar mas a contar algumas de suas estórias mais marcantes em torno de suas mais celebradas partidas. Interessante? Interessantíssimo.
Pois é mais ou menos isto o que ocorre com o livro do qual estamos tratando. Aí estão textos de Audálio Dantas (também organizador do livro), Caco Barcelos, Carlos Wagner, Domingos Meirelles, Joel Silveira, José Hamilton Ribeiro, Lúcio Flávio Pinto, Luiz Fernando Mercadante, Marcos Faerman, Mauro Santayana e Ricardo Kotscho a contarem cada um a estória de uma ou mais de suas mais consagradas reportagens; vicissitudes, aventuras, venturas e desventuras por trás daquilo que nos foi dado a ler na ocasião.
Muitos certamente se recordam das principais reportagens que marcaram a carreira destes repórteres, de sua repercussão e até dos muitos prêmios que ornamentam suas estantes. Vai agora o que poucos sabem, como cada uma delas foi feita, o método de investigação de seus autores, a frenética busca da boa informação e principalmente de sua confirmação através de fontes e meios confiáveis e quanto isto custou de tempo e trabalho na incessante, às vezes infindável pesquisa. Verdadeira enciclopédia para os novatos, estão no livro as artimanhas usadas para contornar obstáculos aparentemente intransponíveis na busca do fio da meada que atava duas ou três pistas que, solitárias, não passavam de pistas.
E ponham-se obstáculos nisso. Principalmente se nos lembrarmos que muitos de seus trabalhos foram realizados no período militar, censura plena, ninguém abrindo o bico e, tudo constatado, tudo checado e confirmado, mutila-se a matéria, dela se tira o mais picante, o essencial muitas vezes. Ou não se publica. Ora porque a censura prévia não deixa; ora porque a autoritária Lei de Imprensa do período vocifera ameaças; ora ainda porque os donos do jornal tem seus medos. Ou interesses, sabe-se lá…
Vem daí, portanto, outra impressão que colhemos do livro. É um libelo pela liberdade de expressão e denúncia de sua negação. Ontem ou hoje. E de outras atrocidades que assolaram e ainda assolam o povo desta terra. Desvelam os autores, cada um a seu modo, as mazelas que vitimam os cidadãos e a cidadania: violência, miséria, corrupção, impunidade, escamoteação de conflitos, o sorriso amarelo ou cínico das meias verdades, meias mentiras com que as autoridades as distilam diariamente sobre nós.
E o fazem as autoridades através da mídia, fato que exige maior atenção. Finda a censura oficial, a imprensa se impõe como a mais acreditada das instituições, como o comprovam as pesquisas de opinião. Isto confere ao profissional de comunicação – e, conseqüentemente ao repórter – senão poder, inquestionável prestígio. Ocorre que, se no período ditatorial quase todos enfrentavam juntos a censura, comum e escancarado inimigo, hoje o bom repórter enfrenta, às vezes solitário, um inimigo mais tinhoso da verdade, sutilmente travestido em “pensamento único”. Sob a vigência deste não há livre pensar, cerceados que somos pelo excesso de informações pautadas menos para o esclarecimento que para o convencimento. Atolados pelas mesmas informações, pelas mesmas interpretações, o público é objeto de um futuro e falso consenso a favor das políticas que interessam aos poderosos de sempre.
Isso faz ressaltar a diferença entre o repórter e o homem de comunicação em geral, ainda que este seja continente daquele. É que o repórter busca a verdade enquanto os demais, pautados por seus chefes e pela imensa e nem sempre racional burocracia das redações, esmeram-se na prática do já denunciado convencimento. Bolinam-se com o publicitário a ponto de quase se confundirem com este.
A leitura atenta de Repórteres salienta a distinção acima. E acrescenta que a busca da verdade completa-se no compromisso de ter o homem – e sua vontade – como agente da História. Daí o faro “das pessoas que perguntam” para a busca daquilo que poderá ser História. Este é o caso de Caco Barcelos ao investigar um conflito entre índios e posseiros, ambos pobres e vítimas da exploração, que redundaria bem mais tarde no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST. Diferente do historiador que busca compreender fatos do passado de reconhecida importância, o repórter investiga hoje aquilo que poderá ser objeto do historiador amanhã.
Como num jogo, às vezes acerta, às vezes erra.
E, no intuito de mais acertar vai o repórter à procura do socialmente relevante deixando para o cronista social as futricas de limitado interesse, assim como deixou para seus demais colegas comunicadores a divulgação da propaganda disfarçada em notícia. Daí que a busca da verdade é quase sempre forma de se fazer justiça. Ou, pelo menos, de indignar-se e indignar aos outros pela denúncia da injustiça, coisa infelizmente tão abundante em nosso meio. Neste afã, transfigura-se o “fazedor de perguntas” em fazedor de história. Ao lançar luzes, com a objetividade possível e a paixão indispensável à boa reportagem, sobre acontecimentos distantes, exóticos ou desconhecidos, realçando-lhes detalhes reveladores, o repórter contribui para transformá-los em História. Esta não haveria sem o indispensável registro.
Canudos não seria Canudos como o conhecemos hoje sem o hercúleo trabalho de Euclides da Cunha. E, nem este seria o mesmo sem o guerreador arraial perdido na caatinga, caso não raro em que obra e autor quase que se confundem. Conclui-se, portanto, que bons repórteres como esses que o livro nos apresenta trazem no olhar, nas rugas, na alma as marcas das histórias que viram, contaram e ajudaram a fazer. Trazem-na às vezes no mutilado corpo, como é o caso de José Hamilton Ribeiro, quem perdeu uma das pernas como correspondente de guerra no Vietnã, triste atestado dos muitos riscos a que estão sujeitos os repórteres.
Aos riscos se sucumbe ou sobrevive. Na primeira hipótese não haveria o que contar. Na segunda, entretanto, quem por eles passou teve a mais radical das experiências, aquela que se situa no limite entre vida e morte. E delas está o livro repleto de exemplos, aventuras que fariam dos filmes de Indiana Jones meros contos de fada. Basta imaginar as vicissitudes que acometem um correspondente de guerra, quem para ambos os contendores pode ser um suspeito: nem sempre fala a língua das pessoas que entrevista e com as quais mal convive; não raro se põe na perigosa linha do fogo cruzado, sendo jogado para lá ou cá conforme as circunstâncias, as medidas de segurança, etc. E, certamente o pior, cobram-se-lhe posições. Afinal dentre as paixões de vida ou morte que uma guerra desencadeia não há clima para a amena neutralidade. Cobra-se do repórter a assunção dos pontos de vista do lado em que ele geográfica e circunstancialmente se encontra.
Por isso as experiências narradas pelos correspondentes de guerra são um dois pontos fortes do livro. Entre elas, as descritas por Joel Silveira durante a Segunda Guerra Mundial; por Audálio Dantas numa aparentemente insana “guerra do futebol” entre Guatemala e Honduras; além do já citado Hamilton Ribeiro no Vietnã.
Situam-se no mesmo diapasão a invasão da Checoslováquia pelas tropas do Pacto de Varsóvia em 1968, analisada por Mauro Santayana, além das inúmeras guerras civis que estes repórteres, a exemplo do mestre Euclides, descreveram. Inclui-se entre elas algumas absurdas situações que as ditaduras – e os crimes comuns que elas acobertam – ensejam para repórter eventualmente transformado em testemunha, como ocorreu a Domingos Meirelles no Paraguai, estória de dar inveja a qualquer filme de espionagem.
Não se esgotam em guerras ou ditaduras as experiências narradas no livro Repórteres. Ou, vá lá, talvez se esgotem se considerarmos a guerra surda e sempiterna entre oprimidos e opressores principalmente quando esta se expressa sob suas formas mais brutais como o assassinato, a impunidade, a corrupção, a ameaça ou sumiço de testemunhas, a apropriação de territórios indígenas, a exploração da prostituição infantil, entre outras.
Para além de tão marcantes experiências, os repórteres autores do livro nos remeterão à uma profunda reflexão sobre as mesmas e, ao fazerem uma espécie de meta reportagem, ao próprio papel da imprensa nos tempos de hoje.
Isto justificaria o segundo superlativo a que nos referimos no início, o de que o livro é oportuníssimo.
Move-se o bom repórter pela busca do novo, do inusitado, do outro lado da história oficial; move-se, enfim, pela idéia talvez ingênua de que a verdade a ser descoberta e mostrada ao mundo porá fim às injustiças que o indignam. Bem diferente, portanto, do jornalismo burocrático e apalermado, oficioso e dominante a que cotidianamente somos submetidos, aquele que como já dissemos é movido pela lógica do convencimento.
Se há outro lado, não há pensar único.
O que nos mostra a televisão e a maioria dos jornais é o conto de fadas só travestido para conseguir credibilidade e, assim, eventualmente temperado com chocantes estórias nas quais o lobo mau é aquele que desserve ao projeto dominador. Daí a colagem de press releases, a pauta preestabelecida, idêntica em todos os veículos, inclusive nos menores detalhes do escândalo de plantão. Idêntica sobretudo na linguagem, esta ora presa ao mesmo e padronizado modo de narrar.
O padrão hodierno de redação jornalística, que já ensejou inclusive manuais, a todos impõe a linguagem chamada enxuta, de fácil digestão, o que somente contribui para o empobrecimento da mesma, aprisionada esta ao vocabulário reduzido, à sintaxe e à semântica previsíveis, às figuras de linguagem mais próximas do lugar comum. Assim algemado o estilo, rompe-se a tradição, senão universal ao menos brasileira, da redação literária, do jornalista escritor que tantos gênios da literatura nos revelou, de Machado de Assis a Guimarães Rosa, de Euclides da Cunha a Graciliano Ramos, de Monteiro Lobato a Nelson Rodrigues, e por aí vai…
Na contramão dessa perniciosa tendência, os textos apresentados em Repórteres recuperam a saudável tradição. Aos saborosos ingredientes que cada um destes artesãos da notícia nos oferece, acrescentam-se os molhos, o modo de preparar o prato e apresentá-lo aos comensais, o característico e sempre admirável estilo de quem, na melhor escola, aprendeu a arte de contar histórias.
Pensamento e linguagem únicos não combinam com liberdade; ao contrário constituem a essência de um novo totalitarismo imposto pelo poder que se concentra.
A liberdade se expressa principalmente através da linguagem. E segue pelo compromisso com a verdade que virá à tona graças à obstinação que por ela nutrem profissionais como os autores de Repórteres, livro que, pelas qualidades apontadas e outras que o leitor haverá de pinçar, alçam-no à categoria dos de leitura indispensável, tanto para estudantes e profissionais de jornalismo, como para todos os que cultivam a liberdade de expressão como basilar princípio da democracia e da civilização