Nilson Araújo de Souza
O Brasil foi, inquestionavelmente, o país fora dos circuitos centrais em que, neste século, mais avançou o pensamento econômico. No entanto, nestes tempos obscuros em que tem predominado a ideologia neoliberal, a ausência de qualquer pensamento é que tem caracterizado o mundo oficial da economia e da ciência econômica no país. Os preconceitos forjados por essa ideologia – “globalização”, “falência do Estado”, “eficiência do mercado”, “fim da história” – têm assumido foros de verdade e invadido, não apenas a política econômica, mas o mundo da academia, que deveria estar mais preocupado com a ciência.
É, portanto, muito alvissareiro o fato de que, com certa frequência, estejamos sendo recentemente brindados com livros, dissertações e teses que procuram recuperar o debate econômico que se processou no Brasil no período anterior. Esse novo interesse pelo trabalho criativo que os brasileiros realizaram no domínio da economia política é sintoma, não apenas do fato de que, apesar das pretensões arrogantes, o neoliberalismo não se converteu em “pensamento único”, como também do esgotamento a que chegou essa ideologia, esgotamento que se manifesta na verdadeira fúria com que a crise econômica que se alastra pelo mundo vem atingindo os países que foram mais longe na implementação dos dogmas neoliberais.
Reúnem-se, agora, em livro alguns capítulos de teses e dissertações de três professores universitários, José Adalberto Mourão Dantas, Cinthia Maria de Sena Abrahão e Geraldo Antônio dos Reis, que, sob o título “Pensamento Econômico Brasileiro”, procuram debater o pensamento econômico do período mais rico da economia brasileira, inaugurado com a Revolução de 30. Um importante livro, que, de certa forma, serve de referência para esses novos trabalhos, já se escrevera sobre o assunto, de autoria de Ricardo Bielschowsky, intitulado “Pensamento Econômico Brasileiro – o ciclo ideológico do desenvolvimento”.
Longe de serem repetitivos, esses trabalhos procuram desvendar novos caminhos. Escolheram os três principais economistas que intervieram no debate entre os anos 40 e os anos 70, além de haverem comandado a área econômica do governo, nas pastas da Fazenda ou do Planejamento. Referimo-nos a Eugênio Gudin, Octávio Gouveia de Bulhões e Celso Furtado.
Os dois primeiros expressam uma mesma corrente de pensamento, que, de filiação teórica neoclássica, pautam suas elaborações na crença das faculdades alocativas do mercado e do livre-cambismo. Uma espécie de precursores do neoliberalismo tupiniquim. Furtado é o principal prócer brasileiro de uma outra escola de pensamento, que vem de Alexandre Hamilton e Friedrich List, o nacional-desenvolvimentismo, que advoga a ação do Estado e o protecionismo como instrumentos para a ruptura com o subdesenvolvimento.
É evidente que essa caracterização simplifica um pouco a real contribuição desses pensadores, na medida em que, além de terem recorrido a outras fontes teóricas (Furtado, por exemplo, usou bastante Karl Menheim no desenvolvimento de sua idéia sobre planejamento), deram uma insubstituível contribuição pessoal. Mas, por outro lado, não devemos descurar o fato de que são, disparadamente, os principais representantes dessas escolas de pensamento no Brasil. Essas são, aliás, as correntes de pensamento econômico que vêm se digladiando no Brasil ao longo deste século. Essa afirmação não desmerece as contribuições de inspiração marxista que ocorreram no período. Estas, no entanto, vieram, no fundamental, em reforço à segunda corrente, na medida em que a estratégia dos comunistas passava pela ruptura com a dependência externa.
E era natural que fosse esse o enfrentamento principal no terreno das idéias econômicas, já que era esse o principal enfrentamento no terreno ideológico. Esse embate, que teve sua pré-história na época do Segundo Império, assumiu significação mais decisiva com a República. O nacional-desenvolvimentismo sentou praça no Brasil quando o ministro Manuel Alves Branco, depois de dizer em seu “Relatório” de 1844 que “um povo sem manufaturas fica sempre na dependência de outros povos”, elevou as tarifas de importação de 15%, que vigia desde 1828, para faixas entre 30% e 60%. E teve continuidade com o fundador da Associação Industrial, Antônio Felício dos Santos, que, em seu “Manifesto”, datado de 1881, caracterizou bem o que é um livre-cambista: “E chamam-se livre-cambistas os que assim se mostram realmente protecionistas… do estrangeiro”.
A República colocou o debate num novo patamar. De um lado, estavam os republicanos do Rio de Janeiro, que, reunindo intelectuais e militares, tinham peso decisivo nos governos de Deodoro e Peixoto e defendiam que a industrialização seria o caminho para o desenvolvimento. Rui Barbosa, como ministro da Fazenda de Deodoro, foi o principal defensor desse caminho, chegando a dizer que “a República só se consolidará, entre nós, sobre alicerces seguros, quando as suas funções se firmarem na democracia do trabalho industrial”. E deu sequência às suas idéias através de um amplo programa de incentivo à industrialização, que ia desde a cobrança em ouro das tarifas de importação até uma reforma tributária e uma reforma bancária que estimulavam a formação de indústrias. De outro lado, estavam os republicanos de São Paulo, representados por políticos ligados à oligarquia cafeeira, como Prudente de Moraes e Campos Salles, que defendiam a “vocação agrícola” do Brasil e estavam, portanto, de acordo com as idéias do “livre”-comércio internacional, que significava, na prática, a livre importação de produtos industriais ingleses e o bloqueio à industrialização brasileira.
No começo deste século, com a República já convertida em República Velha pelas mãos da oligarquia cafeeira, que ascende ao poder em 1894 com Prudente de Moraes e começa a desmontar os mecanismos pró-industrialização implantados por Rui Barbosa, reacende o debate sobre os dois caminhos do desenvolvimento brasileiro. O desmonte industrial foi realizado sobretudo pelo ministro da Fazenda de Campos Sales, Joaquim Murtinho, que, na virada do século, antecedendo os neoliberais de plantão, varreu as tarifas de importação, cortou os investimentos públicos, apertou o crédito e elevou os juros, promovendo uma brutal recessão, com o único intuito de arranjar divisas para pagar a dívida externa junto aos bancos ingleses. Murtinho dizia que o Brasil não podia seguir o caminho industrial dos EUA porque não tínhamos “as aptidões superiores de sua raça”. Na oposição, estavam os fundadores e dirigentes do Centro Industrial do Brasil (atual FIRJAN), entre eles o General Serzedelo Correa e o engenheiro Luiz Rafael Vieira Souto. Serzedelo, que defendia a intervenção do Estado e o protecionismo, dizia que “os povos que não têm a independência econômica não podem jamais constituir o tipo de grande nação”. Vieira Souto, em complemento, depois de denunciar o livre-cambismo, como sendo favorável unicamente à Inglaterra industrializada, declarou que “o problema das tarifas (de importação) é o epicentro da defesa da indústria”.
A Revolução de 30 transformou as idéias dos nacional-desenvolvimentistas em realidade. A industrialização brasileira, que tivera alguns surtos no passado, converteu-se em um fenômeno inexorável. Além de contar com uma conjuntura internacional favorável (Grande Depressão e Segunda Guerra), passou a ser o objetivo central do governo de Getúlio Vargas, que recorreu largamente aos instrumentos propugnados pelos nacional-desenvolvimentistas, a saber, a ação estatal na economia (através do planejamento, da legislação trabalhista e da construção de estatais) e o protecionismo. É nesse novo quadro que é retomado o debate econômico. O primeiro grande debate se dá entre o engenheiro-economista Eugênio Gudin e o engenheiro-empresário Roberto Simonsen e ocorre, em 1945, a propósito da discussão do Plano de Organização da Economia Brasileira, do governo Vargas. Membro do Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial, Simonsen foi encarregado de elaborar o relatório; por sua vez, membro da Comissão de Planejamento Econômico, Gudin foi incumbido de apresentar o respectivo parecer.
Simonsen vinha desenvolvendo suas idéias desde a década de 20, quando, por razões profissionais, teve oportunidade de conhecer boa parte do território brasileiro. Essa experiência o fez concluir que “o engrandecimento da nação (se daria) pelo desenvolvimento industrial”. Segundo ele, “da liberdade ampla no intercâmbio comercial resulta, pela atuação natural de conhecidos fatores, o predomínio dos mais fortes”. Por isso, “não se pode conceber a idéia de nação sem a do protecionismo”. Além disso, “o tipo de grande empresa, servida por supermáquinas, seria reservado para as indústrias basilares e aí se justificaria, a par de uma necessária emulação, um maior controle do Estado, para evitar os malefícios decorrentes do excesso de poder econômico em mãos de poucos”. Simonsen, que continuou a tradição dos nacional-desenvolvimentistas, além de estar em dia com o pensamento econômico, depois que a Grande Depressão deu um golpe mortal no pensamento neoclássico e deu origem ao pensamento keynesiano, foi não apenas um teórico e animador do desenvolvimento industrial e da independência econômica, mas também um implementador dessas idéias, tanto como integrante de comissões econômicas governamentais quanto como dirigente de órgãos empresariais: foi presidente da FIESP e fundador e presidente da CNI.
Gudin, objeto do estudo de Cynthia Abrahão (“Eugênio Gudin, disseminador do laissez-faire no Brasil”), iniciou sua vida profissional como engenheiro de empresas estrangeiras de serviços públicos, experiência que, conforme a autora, pode ter influenciado sua posição futura no domínio da economia. A Grande Depressão, aliada a uma experiência frustrada de empresário de laranjas, despertou seu interesse por economia. A partir de 1929, iniciaria toda uma obra que vai até 1986, ano de sua morte. Um fato importante é que, apesar de sua oposição ao caminho seguido por Getúlio, este sempre o convidou para participar das comissões econômicas que criava. De acordo com Abrahão, Gudin chega a responsabilizar Getúlio por sua opção pela economia: “Eu fui entrando no plano da economia sem projeto, sem plano. O Dr. Getúlio tem muita responsabilidade nisso. Ele nunca formou uma comissão – e foram muitas – sem me nomear”.
Independente de outras passagens de Gudin pela economia (inflação, por exemplo), é evidente que a questão central que estava no debate dizia respeito à industrialização. Há quem defenda que, ainda que não fosse um entusiasta da industrialização, Gudin não lhe era um opositor ferrenho. Celso Furtado, por sua vez, conforme diz Abrahão, acreditava que ele era “um representante da oligarquia agrária, opositor da indústria”. Na verdade, pode-se perceber dois momentos do pensamento de Gudin sobre a industrialização. Num primeiro momento, que vai dos anos 30 aos 50 e em que a indústria ainda se debatia para nascer no ventre do modelo primário-exportador, ele era um opositor aberto da industrialização. Era isso o que significava sua defesa de que não deveria haver uma política estatal favorável à industrialização, deixando-a ao sabor das “forças de mercado”. É evidente que, se dependesse do mercado, o Brasil seguiria primário-exportador e as nações desenvolvidas manteriam o monopólio da indústria. Num segundo momento, que se inaugura nos anos 50, quando a industrialização já se tornara inevitável, deixou de fazer-lhe oposição. Refutava, no entanto, a ação empresarial do Estado, que considerava “como elemento deturpador da economia de mercado”, nos termos de Abrahão, e, para sanar o que considerava de “deficiência de recursos para financiar os investimentos privados”, defendia “a entrada do capital estrangeiro”. Nesse mesmo momento, segunda a autora, coincidentemente deixou de criticar a falta de experiência dos EUA para exercer o papel de economia hegemônica. Portanto, quando a industrialização se tornou inevitável, passou a defender que ela se desse sob controle estrangeiro, particularmente norte-americano. E, passando da teoria à prática, aproveitou-se do curto interregno em que esteve à frente do Ministério da Fazenda, com a morte de Getúlio, para elaborar a Instrução 113, da antiga SUMOC (atual Banco Central), destinada a favorecer a entrada do capital estrangeiro no Brasil.
Tinha razão Antônio Felício dos Santos, quando, no século passado, percebeu que os livre-cambistas eram “protetores do estrangeiro”. Não está correto, portanto, o termo “liberal” para designar a esses senhores, que, em nome da liberdade, propugnam, na prática, o monopólio estrangeiro sobre nossas economias.
Os principais personagens do embate seguinte foram Octávio Gouveia de Bulhões e Celso Furtado, objetos de estudo, respectivamente, de Geraldo dos Reis e José Adalberto Dantas. O pano de fundo do debate foram as idéias da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina). Órgão da ONU, com sede no Chile, abrigou, desde os anos 40, importantes intelectuais da América Latina, preocupados em desvendar a realidade da região, bem como os caminhos da superação do atraso e do subdesenvolvimento. Celso Furtado foi o principal pensador brasileiro que participou da elaboração e divulgação das idéias cepalinas. E Bulhões foi também o principal brasileiro a combater essas idéias.
A obra teórica mais importante de Furtado é, inquestionavelmente, “Desenvolvimento e subdesenvolvimento”, de 1961, assim como “Formação Econômica do Brasil” é sua principal obra de história e análise econômica. Tem sido uma verdadeira obsessão para Furtado, ao longo de sua vida científica, descobrir as razões do subdesenvolvimento e os caminhos para viabilizar o desenvolvimento. Segundo ele, o subdesenvolvimento dos países da periferia é produto do desenvolvimento dos países do centro, assim como o desenvolvimento destes é, de certa forma, produto do subdesenvolvimento daqueles. E, assim, o subdesenvolvimento ocorre “em economias que não podem ser concebidas fora de certo sistema de relações internacionais que engendra o fenômeno da dependência” (cit. em Dantas, “O Pensamento Econômico de Celso Furtado”). Isso porque, além de parte do excedente criado nas economias subdesenvolvidas ser transferido para o centro, este bloqueia o acesso daquelas às novas tecnologias e à produção de meios de produção: “o subdesenvolvimento, por conseguinte, é uma conformação estrutural produzida pela forma como se propagou o progresso tecnológico no plano internacional”. A teoria da deterioração dos termos de intercâmbio, formulada por Raul Prebisch, fundador e principal dirigente da CEPAL, serviu de base para explicar os caminhos por onde o excedente econômico é drenado para o exterior.
A efetivação do desenvolvimento econômico nos países periféricos exigia, de acordo com Furtado, o rompimento com a dependência externa: “A partir desse momento, o conceito de desenvolvimento ligou-se explicitamente à idéia de interesse nacional”. Para ele, a indústria é o motor do desenvolvimento e “cabe… à tecnologia desempenhar o papel de fator dinâmico da economia industrial”. Nesse sentido, o conceito de forças produtivas, formulado por List, cumpre um papel chave no sistema teórico de Furtado. O desenvolvimento das forças produtivas é o elemento decisivo para o desenvolvimento econômico, mas este não se limita apenas a isso. Desenvolvimento não é um mero sinônimo de crescimento econômico. Implica também em desenvolvimento social, político e cultural. A cultura, aliás, cumpre importante papel na teoria furtadiana, na medida em que a criação de uma mentalidade favorável é um importante fator propulsor do desenvolvimento. Por fim, no processo desenvolvimentista, cabe ao Estado o papel de “agente propulsor e orientador das atividades econômicas e árbitro dos conflitos de classes na definição do interesse nacional”.
O título escolhido por Geraldo Reis para o trabalho sobre Bulhões não poderia ser mais apropriado – “O anti-desenvolvimentismo de Bulhões” -, pois, à sua época, ninguém foi mais ferrenhamente contra o desenvolvimento do que ele. Referimo-nos, certamente, à fase madura de Bulhões, pois, conforme nos lembra Reis, em sua primeira fase, ele chegou a participar da assessoria econômica do primeiro governo de Vargas, quando comungava, no fundamental, com as idéias que o norteavam, como a industrialização, a ação estatal na economia, o protecionismo. Nesse período, participou da conferência de Bretton Woods, quando chegou a rascunhar com Keynes uma proposta para correção dos desequilíbrios do balanço de pagamentos, o que, segundo ele, “foi um dos fatos mais marcantes da sua vida intelectual” (cit. in Reis).
A partir de 1950, conforme assinala Reis, com o livro “À margem de um Relatório”, Bulhões assume sua verdadeira identidade: desde então, tornou-se no mais duro opositor da CEPAL no Brasil e converteu em sua obsessão o combate sem trégua à inflação. O primado do combate à inflação, isto é, da estabilidade monetária, sobre o desenvolvimento o acompanhou o resto de sua vida. Suas idéias sobre industrialização eram semelhantes às de Gudin. O desenvolvimento poderia prescindir dela, desde que promovesse as exportações. A industrialização poderia ocorrer, mas sem uma política deliberada do Estado, como defendia a CEPAL; resultaria da ação espontânea do mercado, “desde que houvesse liberdade para a iniciativa privada, notadamente a estrangeira, que deveria receber um tratamento especial do governo” (cf. Reis). Isso porque “a entrada de capital estrangeiro evitaria a ampliação dos investimentos do Estado”. Ou seja, à maneira de Gudin, industrialização só com controle estrangeiro.
Ele era intolerante com qualquer nível de inflação. Crescimento, só se fosse com estabilidade monetária. Senão, era melhor que não houvesse crescimento. Depois de algumas tentativas de explicar a inflação por outros caminhos, terminou por se identificar com a visão monetarista: a inflação seria produto do excesso de moeda, que, por sua vez, resultaria, do excesso de gasto público, de investimento privado e de salários, o que seria expressão do conflito distributivo. O centro da política econômica seria, portanto, a eliminação desses “excessos”. Nas palavras de Reis: “na sua visão, a política econômica deveria prioritariamente promover a estabilidade, sobretudo com o uso dos instrumentos clássicos como controle dos gastos públicos, dos salários e do crédito”. E foi isso que fez Bulhões quando, secundado por Roberto Campos, assumiu, em 1964, o comando da área econômica do governo Castelo Branco e implantou o PAEG (Programa de Ação Econômica do Governo). O resultado foi uma brutal recessão que duraria até 1967.
Criou-se a ilusão de que essa sua ação teria limpado o terreno para o crescimento que ocorreria a partir de 1968. Na verdade, o crescimento se deu graças à mudança da política econômica, que ocorreria sob o comando de Delfim Netto. Admitindo que a economia poderia crescer mesmo com um certo nível de inflação e que a pressão inflacionária teria passado a ser predominantemente de custos (pressão tributária e elevação dos custos financeiros), Delfim adotou um programa que visava estimular a demanda e ocupar a capacidade ociosa, revelando uma flexibilidade que Bulhões e Gudin jamais tiveram. O conservadorismo e o anti-desenvolvimentismo de Bulhões e seus pupilos Roberto Campos e Mário Henrique Simonsen eram tão grandes que se opuseram fortemente ao caminho inaugurado por Delfim, taxando-o ora de “estruturalismo bizarro”, ora de “uma espécie de marxismo de varejo”. Na verdade, a diferença entre Delfim e eles era que, apesar de, como eles, defender o capital estrangeiro, conferia um papel, ainda que secundário, ao capital nacional.
Há quem ache estranho o fato de que, sendo profundamente anti-estatizantes, esses economistas tenham convivido com o crescimento das estatais no período militar. Na verdade, o PAEG propugnava a privatização. No entanto, esse seu aspecto não pôde ser implementado. E Reis, corretamente, dá a razão: “Nem mesmo entre os militares vinculados à ESG, com quem a equipe econômica liderada por Bulhões e Campos tinha proximidade, suas idéias (de privatização, nota nossa) predominavam. Ao contrário, a principal resistência à privatização das empresas era dos militares”. Delfim, por sua vez, mesmo não morrendo de amores pelas estatais, não tinha nada contra sua expansão, desde que ajudassem a promover o crescimento da economia (é durante sua gestão, por exemplo, que se cria o sistema Telebrás). Delfim é uma espécie de desenvolvimentista de filiação neoclássica. E, depois, no período Geisel, passa a predominar a linha militar abertamente favorável à ação estatal e ao protecionismo, programa que é corporificado no II PND.
Isso mostra que não se sustenta um outro preconceito que tem caracterizado os meios intelectuais e políticos brasileiros: o de que teria predominado, durante todo o período militar, as idéias “liberais” dos economistas liderados por Gudin, Bulhões e Campos. Na verdade, elas predominaram apenas no período inicial, de 1964 a 1967, e ainda assim com a resistência dos militares a um de seus principais aspectos, a privatização. Mesmo assim, conseguiram fazer o estrago que fizeram. Aliás, nas poucas vezes em que essas idéias “estiveram” no poder, deixaram um profundo rastro de destruição. Foi assim no começo do século com Joaquim Murtinho; foi assim na década de 60 com Bulhões e Campos; e está sendo assim agora com a equipe econômica de Fernando Henrique Cardoso. Não apenas destruição tem sido o seu legado. Eles têm procurado entregar o que sobra ao monopólio do capital estrangeiro. É nisso que consistem suas idéias “liberais”: liberdade total para a invasão do capital estrangeiro.
O legado do nacional-desenvolvimentismo tem sido o oposto disso. No período de 1930 a 1980, excluindo a gestão Bulhões-Campos e o ligeiro interregno de Gudin, as idéias que predominaram na ação governamental no Brasil foram as do nacional-desenvolvimentismo. E foi sua implementação que transformou o Brasil de uma economia primário-exportadora numa economia urbano-industrial moderna. Nesse período, a economia brasileira foi a que mais cresceu no mundo, a um ritmo anual de 7%, chegando a 10 ou 11% em vários momentos. Foi isso que fez com que o Brasil chegasse a ser a oitava economia do mundo capitalista. O trabalho dos “liberais” tem sido sempre o de destruir o que os nacional-desenvolvimentistas construíram. Não é à toa que a obsessão de Fernando Henrique, repetida compulsivamente no discurso e na prática, vem sendo a de destruir a “era Vargas”. Destruir a “era Vargas” significa, na verdade, destruir o Brasil. Coisa que, certamente, ele não conseguirá. A retomada do debate das idéias econômicas é apenas um dos indícios dessa verdade.
São Paulo, 15 de novembro de 1998