A pretexto de escrever um livro sobre a história da construção de um convento em Mafra, Portugal, no século XVIII, Saramago inventou outra história, na qual entram personagens inesquecíveis.
Aqui estão as famílias dos Sete-Sóis e a das Sete-Luas, e mais padre Bartolomeu de Gusmão com sua passarola, e o compositor Scarlatti com seu órgão e sua música.
A eles se somam mais reis e rainhas e princesas, e mais uma pedra descomunal que precisa ser transportada a longa distância.
Para o crítico José J. Veiga, o autor Saramago, neste livro, aproxima-se de Homero, ou seja, escreve histórias aparentemente reais, mas inventadas com inigualável competência.
Depois de lidas passam a ser reais e a fazer parte da longa e sofrida experiência humana. Termina o crítico dizendo “descubram José Saramago e façam dele uma possessão ultramarina particular de cada um e aproveitem.”
“Outras Palavras” é o programa de literatura de Levi Bucalem Ferrari na Rádio Cultura do Brasil.
Sobre levi
Poeta, ficcionista, ensaísta, sociólogo e professor universitário. Presidente da UBE - União Brasileira de Escritores, diretor do Sindicato dos Sociólogos de S. Paulo e Presidente do IPSO - Instituto de Pesquisas e Projetos Sociais e Tecnológicos. Integra a Coordenação do Movimento Humanismo e Democracia e o Conselho de Redação da Revista Novos Rumos.
Foi Presidente da ASESP – Associação dos Sociólogos do Estado de São Paulo, Administrador Regional de Santana -Tucuruvi (SP). Coordenador da Proteção dos Recursos Naturais do Estado de São Paulo.
Livros Publicados: Burocratas e Burocracias (ensaio, SP, Ed. Semente, 1981); Ônibus 307 – Jardim Paraíso (poesia, SP, Muro das Artes, 1983); A Portovelhaca e as Outras (poesia, SP, Paubrasil, 1984). O Seqüestro do Senhor Empresário (romance, SP, Publisher/Limiar, 1998); O Inimigo (contos, Limiar – SP, 2003). Recebeu o Prêmio de Revelação de Autor da APCA – Associação Paulista de Críticos de Arte e outros. Publicou diversos artigos, contos, crônicas, poemas e resenhas literárias em coletâneas, jornais e revistas.
Se é notório que os povos lusos já tiveram suas grandezas históricas cantadas e eternizadas nos versos de Luís de Camões e de Fernando Pessoa, com Saramago e sua literatura socializante pudemos retomar as trilhas nas quais a referida pátria sempre alcançou glórias e reconhecimento. Saramago nos conduz numa rota ultramarina com inadjetivável fluídez, e através de sua competência literária chegamos a horizontes mais longínquos e estabelecemos contato com a beleza e grandeza cultural da nação portuguesa.
Memorial do Convento
José Saramago
Bertrand Brasil – 40ª edição – 2010
Em seus textos Saramago não usa parágrafos – só raramente – e não usa também a pontuação tradicional; no lugar dos sinais de interrogação e exclamação, do ponto, dos dois pontos, do ponto e vírgula e dos travessões ele usa a vírgula. É um capricho do escritor que, por isso mesmo, afasta alguns leitores, impacientes com tal incômodo, além de outras singularidades do autor de escrever fora dos padrões convencionais. Mais as diferenças do português de Portugal em relação ao do Brasil, com discrepâncias semânticas, ortográficas, de estilo e muitas expressões próprias daquele país, os idiotismos; é um vasto vocabulário, às vezes arcaico. Todavia, essa edição específica contém flagrantes conflitos entre a língua oficial e a utilizada, como se o livro não houvesse passado por revisão. Por outro lado, seus livros dão a sensação de que são intraduzíveis, dado o seu estilo único.
Se em Ensaio Sobre a Cegueira ele se vale das alegorias, em Memorial do Convento está presente a criação fantástica. Não à maneira de uma novela Roque Santeiro, mas algo mais próximo de O Nome da Rosa, de Umberto Eco.
Lendo Memorial do Convento, deparei-me com duas pedreiras, a do convento e a de Saramago. Mas eu já estou acostumado, este é seu nono livro que leio.
Texto (p.14):
“Perguntou el-rei, É verdade o que acaba de dizer-me sua eminência, que se eu prometer levantar um convento em Mafra terei filhos e o frade respondeu, Verdade é, senhor, porém só se o convento for franciscano, e tornou el-rei, Como sabeis, e frei Antônio disse, Sei, não sei como vim a saber, eu sou apenas a boca de que a verdade se serve para falar, a fé não tem mais que responder, construa vossa majestade o convento e terá brevemente sucessão, não o construa e Deus decidirá. Com um gesto mandou el-rei ao arrábido que se retirasse, e depois perguntou a D. Nuno da Cunha, É virtuoso este frade, e o bispo respondeu, Não há outro que mais o seja na sua ordem. Então D. João, o quinto do seu nome, assim assegurado sobre o mérito do empenho, levantou a voz para que claramente o ouvisse quem estava e o soubessem amanhã cidade e reino, Prometo, pela minha palavra real, que farei construir um convento de franciscanos na vila de Mafra se a rainha me der um filho no prazo de um ano a contar deste dia em que estamos, e todos disseram, Deus ouça vossa majestade, e ninguém ali sabia quem iria ser posto à prova, se o mesmo Deus, se a virtude de frei Antônio, se a potência do rei, ou, finalmente, a fertilidade dificultosa da rainha”. (p.14)
Mas este é apenas um aspecto do escritor, porque ele compensa largamente o desconforto do leitor com a capacidade criativa, narrativa e imaginativa contida em seus escritos, além do jeito satírico, irônico, bizarro, pitoresco e mordaz do autor. É sacrifício e prazer. Um dos destaques de Saramago é por exemplo fazer o estilo ou a linguagem utilizada refletirem toda a atmosfera de suas histórias. No caso de Memorial do Convento, observa-se que a narrativa já revela por inteiro o ambiente e seu tempo. Mas o leitor só conseguirá admirar o texto de José Saramago se for capaz de contemplá-lo não como uma peça literária, mas como uma obra de arte, um texto único a ser descoberto a cada palavra.
A História
Dom João V, rei de Portugal nos anos 1700, é casado com a rainha Dona Maria Ana Josefa que, embora austríaca, já tem um nome todo português. No palácio real há porém uma apreensão: apesar de um bom tempo de casados, não chegou ainda um herdeiro para o trono lusitano.
Frei Antônio de São José é levado então à presença do Rei pelo Bispo Dom Nuno da Cunha. O frei assegura ao monarca que ele terá um sucessor desde que construa um convento, mas franciscano, em Mafra. O herdeiro independeria de ser o Rei ou a Rainha estéreis ou da infecundidade ser causada por um rumoroso séquito que cerca o casal toda vez que eles se deitam à noite. O acordo-promessa foi aceito pelo Rei, apesar da suspeita de que a Rainha, nessa ocasião, já teria uma gravidez não revelada. Graças a sua grande devoção ela teria ocultado a concepção e maquinado com o frei para que o Rei prometesse a construção do convento franciscano.
Surge agora Baltasar Mateus, o Sete-Sóis, um soldado que perdera a mão esquerda na batalha de Jerez de Los Caballeros. Num dia de desfile dos condenados da Inquisição em Lisboa – condenados ao degredo, à prisão, à fogueira, etc – Baltasar vem a encontrar Blimunda, filha de uma das condenadas à fogueira, Sebastiana Maria de Jesus. Blimunda lhe pergunta o nome e ao final do desfile dos condenados Baltasar a acompanha até a casa, junto com o padre voador, Bartolomeu Lourenço de Gusmão. E nessa casa eles vieram a formar um casal.
Dada sua condição de mutilado, Baltasar ensaia certa mendicância, mas começa a trabalhar em um açougue; todavia, vem a pleitear uma “pensão” do Reino, valendo-se justamente do padre Bartolomeu, que tem muito prestígio junto ao Rei, graças aos seus prodígios – de intelectualidade e de inventividade. Depois Baltasar Sete-Sóis vem a trabalhar com o próprio padre na construção de seu engenho voador, uma “aeronave” que tem as vontades como combustível.
Nascido o rebento, deve o Rei construir o convento. Blimunda diz ter uma visão penetrante, que penetra o interior das pessoas, e da terra; saberia inclusive que a rainha já traz um segundo filho, ainda nem sabido pela própria. O nascimento desse outro filho será providencial, pois o primeiro virá a morrer.
Segue-se um longo texto onde Saramago desenvolve suas narrativas fantásticas e também históricas, discorrendo sobre aquele ambiente bizarro com suas igrejas, monumentos, a cavalariça, os santos, as imagens, as ordens religiosas, a profusão de ornamentos e adornos, os fiéis cheios de credulidade, as instituições sacras, os instrumentos e ruídos da folia, a indumentária, rituais, procissões, flagelações, sacrifícios, etc. Mais as bizarrices da corte, a montagem do balão voador e a construção do convento. E a epopeia da obra, os empreendimentos, os engenhos, as ferramentas, os equipamentos, os animais de tração, os milhares de operários, os feridos, os mutilados, os mortos, o sofrimento.
– Padre Bartolomeu Lourenço, de que é que tem medo? – pergunta Blimunda.
– Do Santo Ofício – e continua o Padre – Não é pecado, que eu saiba, nem heresia, querer voar … (p.184)
– o Santo Ofício está se aproximando como se aproximou de minha mãe? – pergunta ela.
– Eu sei de que me acusarão, … dirão que me converti ao judaísmo … (p.185) … Temos de fugir … querem prender-me – continua o Padre.
– Que vamos fazer? – pergunta Baltazar.
– Vamos fugir na máquina [voadora] – responde o Padre. (p.186)
[Eles] reuniram os materiais e as vontades. (p.187) … erguendo sua cabeça de gaivota, lançou-se [a máquina] em flecha, céu acima. … levantaram-se [o Padre,] Baltasar e Blimunda. … Baltasar gritou, Conseguimos, abraçou-se a Blimunda e desatou a chorar (p.189)
– Se não abrimos a vela – diz Blimunda – continuaremos a subir … (p.190) Aonde vamos? – pergunta ela.
– Lá onde não possa chegar o braço do Santo Ofício, se existe esse lugar – responde o Padre. (p.193)
Passam velozmente sobre as obras do convento, mas desta vez há quem os veja, gente que foge espavorida, gente que se ajoelha e levanta as mãos implorativas de misericórdia, … o alvoroço toma conta de milhares de homens … (p.194/195)
… a máquina que baixava, agora devagar, … tocou o chão … Frouxos de membros, extenuados, os três viajantes escorregaram para fora, … nem foi preciso invocar S. Cristóvão, ele lá estava, vigiando o trânsito, viu aquele avião desgovernado, deitou-lhe a grande mão e evitou a catástrofe, para seu primeiro milagre aéreo não esteve nada mal. (p.196)
– Onde estamos – pergunta Blimunda (p.196)
– Não sei onde estamos – responde o Padre. – Quando nascer o dia, veremos melhor, subiremos a um destes montes e de lá, orientando-nos pelo sol, acharemos o caminho … (p.197)
… o Padre com um ramo inflamado … – Se tenho de arder numa fogueira, fosse ao menos nesta. – Afastou-se ele para as moitas …, (p.198) O tempo passava, o Padre não aparecia. Baltasar foi buscá-lo. Chamou por ele, não teve resposta. (p.199)
Levaram dois dias [Baltasar e Blimunda, sem o Padre] a chegar a Mafra.
… procissão na rua, todos dando graças pelo prodígio que fora Deus … mandando voar por cima das obras da basílica o seu Espírito Santo. (p.200)
… não pode Baltasar Mateus, o Sete Sóis, dizer, Eu voei de Lisboa ao Monte Junto, tomá-lo-iam por doido … (p.201)
… por que construímos nós igrejas e conventos na terra ? – pergunta Dom João V – ao arquiteto Frederico Ludovice (Friedrich Ludwig)
– Porque não compreendemos que a terra já é uma igreja e um convento, lugar de fé, … de clausura … – responde o arquiteto. (p.271)
Ao ouvir que queria el-rei ampliar o convento … de oitenta para trezentos [frades], o provincial … beijou as mãos da majestade, e enfim declarou, … Senhor, ficai seguro de que neste mesmo momento está Deus mandando preparar novos e mais suntuosos aposentos no paraíso para premiar quem na terra o engrandece … Dom João V levantou-se de sua cadeira, beijou a mão do provincial, humildando o poder da terra ao poder do céu, … (p.273)
Comentários e excertos:
Assis Utsch (autor de O Garoto Que Queria Ser Deus)