Escândalos envolvendo homens públicos se sucedem com tal freqüência que deixam estarrecida a opinião pública. Eu, que nem sei bem o que é essa tal de opinião, assim tão difusa e indefinível, apenas percebo que um grande número de pessoas não consegue falar de outro assunto. Já tem como julgados e condenados os suspeitos de plantão que passam a ser sinônimo de corrupto nas brincadeiras, anedotas, conversas do dia a dia.
Às vezes me surpreendo em não saber da última descoberta sobre as supostas falcatruas desses homens-símbolo. E sinto que, assim agindo, surpreendo também o interlocutor. Sinto e faço sentir o mesmo pasmo causado pelo meu desconhecimento e desinteresse por outro tipo de escândalo, o representado pelos deslizes sexuais, conjugais, negociais, fofocais, envolvendo celebridades midiáticas de todos os matizes.
Seria isso um tipo de omissão, portanto, de conivência passiva? Alienação, alheamento? Dou-me o benefício da dúvida e, por enquanto, afirmo apenas que me comporto como a personagem do poema Transitório Definitivo de Aníbal Machado, quando afirma: Os pequenos acontecimentos avultam aos meus olhos, os grandes se amesquinham.
Abaixo tento explicação mais lógica, mas antes registro meu repúdio a toda e qualquer forma de corrupção, particularmente a que envolve recursos públicos. Não há brincar com isso, nenhuma dúvida deve pairar.
A culpa é sempre
atribuída ao governo
Para lá de um horizonte tão condenável quanto óbvio, é possível fazer algumas reflexões. A primeira é a de que, se o escândalo envolve homens públicos, sejam eles deputados ou senadores; juízes ou desembargadores; ministros ou barnabés, a culpa é sempre atribuída ao governo. E, por extensão, ao Estado. Pouquíssimos são capazes de constatar que são órgãos do Estado que investigam e apuram fraudes e suspeitos. E, se o governo não lhes fornecesse condições como recursos e outras, ou, ao contrário, lhes dificultasse a ação (e há, como já se viu, muitas formas de assim proceder) jamais saberíamos destas coisas que movem a roda de nossas conversas.
Vem em seguida o papel da mídia. Ela é quem apimenta a versão que comentaremos amanhã. Sobre isso, estou cansado de afirmar que não leio jornais nem revistas, não ouço rádio ou assisto à televisão para me informar. Faço as quatro coisas apenas para saber qual é a jogada, a quem interessa a divulgação de um determinado assunto.
Que interesses a mídia representa em cada caso, além, é óbvio do de vender-se e vender nossos olhos a seus anunciantes. E outro menos óbvio. Em nossa frágil democracia, a viver constantes crises de legitimidade, a mídia disputa com o Congresso o papel de intermediador entre a tal de opinião pública e o Poder Executivo.
Legitimação, prestígio, poder. E mais olhos e mais anunciantes.
Ao nos atolar periodicamente de informações bombásticas a mídia exacerba fenômeno típico da sociedade de massas: a substituição de uma informação pela outra, sua banalização pelo espetáculo e, conseqüentemente, o fim da memória e da crítica.
Piada não é indignação. E esta, sozinha, também nada transforma.
No Coliseu midiático
todos queremos sangue
A indignação vendida no varejo tem levado ainda a um certo abuso de mecanismos excepcionais de investigação como o grampo telefônico, as gravações de conversas entre suspeitos, e muitas outras. Tais métodos que, no Estado de Direito, devem ser usados com parcimônia e sob sigilo, são escancarados na mídia. Pela gravidade assim ampliada dos supostos crimes, os métodos excepcionais de investigação se legitimam, passam a ser regra. E até uma conversa afetiva entre o suspeito e seu cão faz parte do espetáculo. No Coliseu midiático todos queremos sangue.
O perigo desses abusos é o de enfraquecer as instituições e a processualista jurídica. Aqueles procedimentos tão velhos quanto morosos, destinados a garantir o direito de defesa, vão nos parecendo obsoletos, merecem ir para o depósito genérico do formalismo e da hipocrisia.
Sugiro um sub-total até aqui. Os julgamentos já foram feitos, denúncias e sentenças proferidas pela mesma pessoa: o apresentador de jornais radio-televisivos, os colunistas de jornais e revistas. E mais, a pena será sempre ampliada pelos ingênuos de plantão em conversas de boteco, blogs, sites, listas de e-mail etc. Exasperações até o próximo espetáculo. Tudo para ser logo esquecido.
Por falar em esquecimento, o tratamento espetacular de escândalos escamoteia, empurra para debaixo do tapete, questões mais graves em nossa formação social. As injustiças que se perpetuam desde o período colonial e que se exacerbaram durante a implantação do neoliberalismo entre nós. Estão aí o desemprego e a precarização do trabalho; a diminuição gradativa dos direitos trabalhistas; o descaso para com os demais direitos sociais.
Quando será manchete – e assunto de boteco- o fato de que mantemos um dos maiores níveis de desigualdade social do planeta? Ou, dado mais palpável, cinqüenta mil mortes violentas por ano. Mais do que muitos países em guerra.
E a educação? Pelo andar da carruagem, colega escritor, nem sei se seremos lidos. Não pelas dificuldades de editar, distribuir, divulgar. Nada disso. Simplesmente porque a educação hoje, mesmo a universitária, não forma leitores, como não forma profissionais nem cidadãos. Preocupe-se também com isso.
Editorial da Revista O Escritor, nº 116, ago.2007.