Ando pelas ruas de minha cidade e observo como as coisas e as pessoas mudaram. E continuam mudando num ritmo cada vez mais frenético. Resulta-me pois a certeza de que a regra é a mudança.
Mais atento, verifico que as transformações não se restringem ao imediatamente perceptível. Não é só o frenesi imobiliário e urbanístico que mais destrói do que ergue coisas belas; nem só o inchaço urbano, nem o trânsito que se satura e polui. Nem o jeito das pessoas se vestirem e se comportarem.
Por trás da foto (ou do filme) pode haver outras coisas que também estão a se transformar. Se há, que coisas são essas? Como mudam? Que relações guardam com as mudanças mais aparentes?
Vem então a pergunta: O que compete ao cientista social, constatar e mensurar a exaustão esses comportamentos aparentes ou tentar compreender as transformações? Onde a imaginação sociológica?
Volto ao que vejo para fazer notar que, se estou armado de uma teoria que compreende as mudanças, fico mais apto para distinguir, dentre tudo o que muda, aquilo que possa ter mais significado. Vejamos alguns exemplos:
a) Já não é tão notável os “rushs” pontuais de algumas décadas atrás: pela manhã bem cedo e pelo final da tarde. Há um locomover-se desencontrado, aparentemente anárquico durante quase todo o dia e boa parte da noite.
b) Homens e mulheres não vestem macacões ou qualquer roupa adequada a trabalhos pesados.
c) Há muitos pedintes; como há muitos jovens que, aparentemente, nem estudam nem trabalham. Há, enfim, muitos “desocupados” a exercer a “vadiagem”, nos termos em que sentencia o Código Penal (ainda?).
Agora converso com alguns. Um ex-aluno do Curso de Administração da PUC é o único vendedor de material hospitalar de uma empresa dos EUA para toda a América do Sul. Trabalha em casa com telefone e computador. Desta forma substitui cerca de algumas centenas daqueles antigos representantes comerciais que viajavam de cidade em cidade, visitando cada hospital, etc.
Ganha bem meu ex-aluno, mas não ganha por duzentas pessoas. Nem consigo imaginar a mais-valia que ele rende.
Também aprecio algumas fotos bem feitas por bons profissionais. A produtividade do trabalho aumentou exponencialmente. Os salários muito poucos, quase nada.
É mais fácil o estudante encontrar estágio remunerado que o profissional encontrar emprego. O sujeito já está na casa dos trinta e tantos anos, mas ainda dorme e come na casa dos pais. Esses, trabalhadores ou aposentados, são os provedores, os “ricos” do núcleo familiar, senão do pedaço.
Alguns trabalhadores estão empregados em grandes empresas e ganham salários de causar inveja. Outros se sujeitam ao trabalho temporário, sem direitos ou garantias, e salários tristes. Outros ainda, desempregados, nem saem de casa porque não têm dinheiro para a condução. Estão mais pobres que os pedintes? É possível.
Assalariados disfarçados sob a forma de autônomos, de terceirizados, etc são os verdadeiros pobres de hoje. E, apesar de sócio-culturalmente apresentarem-se como classes médias, ganham menos que sacoleiros, ambulantes, revendedores de bugigangas.
Tudo isso já configura transformações de monta na segmentação social e na própria estrutura. Quem é o proletário de hoje? Já não é o operário bem empregado. Não seria o desempregado, o sub-empregado, o pequeno funcionário ou o que vive de bico? Fica a pergunta cara aos marxistas: nesse quadro quais seriam as forças sociais propulsoras da mudança?
Todos sabemos que há um conjunto de fatores que explicam as transformações: globalização, abertura descontrolada de mercados, precarização do trabalho, diminuição e desrespeito aos direitos sociais etc.
Mais ao fundo, entretanto, há um imenso volume de capital com o qual o trabalhador interage na produção. Isso eleva exponencialmente sua produtividade, sua capacidade de agregar valor à mercadoria.
Quanto a isso, o que nos ensina Marx? Que os instrumentos e as condições através dos quais os homens ganham seu sustento, o pão de cada dia, conhecidos como conjunto das forças produtivas constituem a base da divisão social do trabalho. Se o primeiro conjunto muda, o segundo também.
(Não estou a incluir aqui as instituições e a manifestação artística. Seria mecanicismo demais imaginar que mudam automaticamente a cada alteração das forças produtivas . Elas têm suas configurações próprias e possibilidade de desenvolvimento autônomo. Mas, não há negar relações, ora de cooperação, ora de conflito entre uma esfera e outra. Menos ainda se pode negar a interação reflexa dessas esferas, a denominada reprodução por alguns teóricos, entre os quais, principalmente Pierre Bourdieu.)
Permanece, não somente numa sociologia marxista, mas como instrumento universal de qualquer análise social, aquele do primado dos instrumentos e técnicas de produção socialmente disponíveis (forças produtivas) sobre a forma como os segmentos sociais se organizam para produzir (relações sociais de produção). E o de que ambos serão determinantes na forma de distribuição da riqueza.
Esta tese, exposta com originalidade e profundidade notáveis em sua Contribuição à Crítica da Economia Política, está longe de esgotar a importância de Karl Marx no moderno conhecimento sociológico. O que importa, todavia, é seu sentido axial, e sua aceitação até por pensadores não marxistas. Há quase um consenso de que o conhecimento da configuração de qualquer formação social começa por aí. Desde sempre, até hoje, talvez até sempre.
Resumo de participação em painel sobre A Sociologia de Marx integrante do simpósio Centenário de Nascimento de Leôncio Basbaum: desafios e perspectivas do marxismo ocorrido no Centro Universitário “Maria Antônia” nos dias 13 e 14 de setembro de 2007. O simpósio teve apoio da União Brasileira de Escritores, UBE e foi realizado pelo Laboratório de Estudos sobre a Intolerância, LEI-USP sob patrocínio da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária da USP.