Foi a maior mobilização profissional da história do cinema brasileiro. Um movimento pleno de nobres ideais, com a presença de todo o povo no cinema. O cinema brasileiro passou a ter seu fórum permanente.
Artigo de Augusto Sevá publicado na Revista de Cinema
A ideia do Congresso (Congresso Brasileiro de Cinema) foi lançada no Seminário Cinema Brasileiro Hoje – Estado e Mercado, que ocorreu durante o Festival de Brasília de 1998 e cujo subtítulo foi revelador: “Mercado: Quanto? Quando? – Estado: Tudo ou Nada?”.
Estávamos aos oito anos do desmonte promovido pelo Governo Collor e apenas quatro da regulamentação da Lei do Audiovisual. Com 25 filmes/ano e 5% da bilheteria, já querendo mais. Querendo diversidade de fontes de fomento, de acesso à distribuição, de ampliação do parque exibidor, de informações, de regulamentação de instituições de governo dedicadas ao cinema, enfim , de todos os mecanismos que entendíamos necessários a uma ação que, de olho no futuro, pusesse em pé o trinômio produção, mercado e governo.
A “visão sistêmica” foi o mote e a síntese das aspirações, dessa busca. O termo apontou para uma solução holística. Foi o conceito necessário e achado pelo Gustavo Dahl. O chamamento equivalente ao “não vamos nos dispersar” de Tancredo Neves.
O Seminário Cinema Brasileiro Hoje foi um sucesso de público e de crítica. O “baixo orçamento de grande bilheteria ”. As autoridades federais, tanto do executivo quanto do legislativo, a princípio reticentes, convenceram-se , através da repercussão da imprensa, de que algo acontecia e do qual não poderiam estar de fora.
No ano seguinte , no Senado Federal, por atuação do Senador Francelino Pereira e do João Eustáquio da Silveira, seu assessor, surgiu a mobilização simultânea e convergente à das lideranças do cinema brasileiro , na Comissão de Educação e Cultura, com a participação de profissionais, empresários, administradores públicos, pensadores e militantes.
Comprovou-se nesse período a pertinência da segunda palavra de ordem, “repolitizar o cinema brasileiro ”, também lançada por Gustavo. A lista “cinemabrasil”, inaugurando o debate cibernético do cinema brasileiro , concebida e coordenada por Marcos Manhães, teve papel fundamental como ferramenta de mobilização e comunicação. Também tiveram papel fundamental as associações de classe que por todo o Brasil se aglutinaram no m ovimento.
Voltando ao Seminário Cinema Brasileiro Hoje e à cerimônia de encerramento, em 18 de outubro de 1998, na sala Alberto Nepomuceno do Hotel Nacional de Brasília, improvisada como auditório, com mais de 300 participantes entre profissionais de cinema, imprensa e autoridades, Nilson Rodrigues lançou, sem saber do alcance que teria, a proposta de realizar, sob o patrocínio da possível segunda gestão do governo Cristóvão Buarque, o Congresso do Cinema Brasileiro. Estávamos a 14 dias das eleições distritais, com o PT e a candidatura de Cristóvão Buarque em ascensão e em pleno clima de vitória pela futura continuidade administrativa.
Não foi o que aconteceu. A possibilidade de encontrar-nos, no início de 99, já na condição de Congresso foi perdida e adiada, sine die.
Mas a semente estava lançada. Ficaram expostas as demandas contidas em “visão sistêmica” e “repolitizar ”. Os que acreditavam no possível foram se agregando num pequeno exército. Elegeu-se sem eleições a liderança de Gustavo Dahl, que conseguiu com clareza e maestria catalisar as energias e apontar o norte.
Perdemos a oportunidade de voltar a Brasília, como havia nos convidado o presidente da Fundação Cultural, mas a roda já rodava e não parou até encontrar o novo destino. Na peregrinação, passamos em Curitiba por gentileza da Cloris Ferreira, novamente Brasília no Festival de 1999, e em Fortaleza, a convite do Wolney de OLiveira, já em evento oficialmente preparatório do que ocorreria em Porto Alegre. Assim, as ideias foram sendo colhidas e os interessados se juntando. Porto Alegre, por gentil convite do governo Olívio Dutra e sob a organização da liderança gaúcha do cinema, foi a terra santa onde se estabeleceu o III CONGRESSO e onde se pariu a organização do Congresso do Cinema Brasileiro.
Foi a maior mobilização profissional da história do cinema brasileiro. Um movimento pleno de nobres ideais, com a presença de todo o povo no cinema. O cinema brasileiro passou a ter seu fórum permanente. Momento singular onde a militância e a formulação se deram os braços, entendendo que tão importante quanto roteirizar, iluminar, dirigir e editar, é compreender a função social do audiovisual e encontrar suas soluções.
Após Porto Alegre, o governo, sensibilizado, montou o GEDIC, Grupo Executivo da Indústria Cinematográfica. Este, durante o ano de 2001, sob os ecos dos tambores “pampeanos”, redigiu a MP-2228-1, que resultou na criação da ANCINE e do Conselho Superior de Cinema como órgãos de Estado, além de diversos mecanismos de fomento e regulação da atividade.
Foi um salto qualitativo nas relações entre o cinema e o Estado. Chegaram novas lideranças e novos operadores, oxigenando a atividade em todos seus segmentos. O cinema brasileiro provou que sabia querer e como fazer.
Dez anos após, elevamos a quantidade de títulos para os 80 filmes/ano. Ensaia-se uma presença significativa do produto independente no mercado televisivo. Multiplicam-se também as distribuidoras, notadamente aquelas destinadas ao filme brasileiro pequeno e médio. Ampliou-se o mercado de salas. A presença do governo na atividade regulatória e formuladora veio tomando substância.
Mas ainda queremos mais. Queremos expurgar radicalmente a tragédia de “ser estrangeiro em seu próprio país”, nas palavras de Paulo Emílio. O Brasil tem todos os elementos econômicos, culturais e sociais necessários a uma indústria audiovisual com presença marcante no mundo. Temos um mercado interno expressivo, com inserção social em ascendência. Temos um parque industrial e tecnológico adequado. Temos talentos e capacidade produtiva. E com tudo isso, a ocupação do mercado em todos os seus segmentos está por desejar.
Olhando o passado recente, vejo que a pré-história foi ontem. Quando não tínhamos informações de mercado, nem legislação regulatória, nem mecanismos de fomento e tampouco estruturas de governo. Não estamos mais apenas agarrados nas tábuas. O desafio agora é ampliar os horizontes. Promover o acesso a quem está de fora e produzir em condições de competitividade. Fazer do cinema e do audiovisual em todas suas manifestações um fenômeno economicamente importante e socialmente presente.
A oportunidade de nos reunir dez anos após, sob a mesma hospitalidade gaúcha, nos permitirá avaliar os resultados desse projeto. É a nova oportunidade de sonhar o sonho
Augusto Sevá é cineasta e foi diretor da Ancine entre 2001 e 2004