GLOBALIZAÇÃO E CATCHUP

Assisti no cinema ao agradável filme Simplesmente Amor, co-produção anglo-franco-estadunidense de 2003, dirigida por Richard Curtis com elenco também internacional: Hugh Grant, Emma Thompson, Liam Neeson, o brasileiro Rodrigo Santoro e a portuguesa Lucia Moniz, esta no papel de Aurélia. Várias histórias bem humoradas, o amor no centro de todas, e o previsível final feliz na comemoração do Natal.

Numa delas, Aurélia é imigrante portuguesa e faxineira numa pousada no interior da França onde um escritor inglês se refugia para escrever seus livros. O contato diário entre os jovens, apesar de dificultado pelo fato de que ele só fala inglês e ela português, faz surgir a atração amorosa. Num final apoteótico, coincidente com as demais historietas, nesta, o escritor volta à França, já falando o português, procura por Aurélia em sua casa, e acompanha sua família até o restaurante em que ela trabalha como garçonete. Na parede do restaurante, a bandeira de Portugal atesta sua origem e gastronomia.

A globalização dos produtos
culturais é sempre reducionista

Na segunda versão, vista na televisão, Aurélia virou espanhola e o escritor inglês aprendeu castelhano ao invés de português, apesar de a bandeira no restaurante ser a mesma. A alteração teve em mim o efeito de um anticlímax. E deixou a lição: a globalização dos produtos culturais é sempre reducionista.

Podemos supor, no caso, que, na primeira versão, o roteirista quis buscar o diferente, o idioma e o país menos conhecidos entre os hegemônicos na Europa Ocidental. Na segunda, os adaptadores, visando ao enorme público hispano-americano residente nos Estados Unidos e na América Latina, optam pelo idioma mais conhecido, facilitando a veiculação do produto, ao custo da traição às intenções do autor.

Fenômeno idêntico ao do filme, já havia sido denunciado em meu romance O seqüestro do senhor empresário (Publisher Brasil, São Paulo, 1998). Um agente da CIA, atuante na América Latina e fluente em castelhano, fora designado para missão no Brasil. Ao constatar que aqui se falava uma língua diversa, lamenta o que julga incabível para sua provinciana e arrogante concepção de mundo, e se revolta  enquanto constata as diferenças e as maiores dificuldades apresentadas pelo português. Resigna-se apenas quando percebe que aqui muitos falam inglês e, vitoriosamente, conclui que, no futuro, o continente todo falará aquele idioma. (Note-se que, nesse texto, o reducionismo aparece não só como sub-produto da dominação cultural, mas pressuposto e exigência de um projeto imperial).

Sempre assim, tudo tem que apresentar o dominante gosto de catchup e coca-cola quando se tratar da distribuição massiva. O que foi usado acima como metáfora para produtos culturais, é realidade para a gastronomia, pelo menos para Antonio Houaiss, quem, no salivante Gastronomia e culinária: Magia da cozinha brasileira (1979), depois de dissertar sobre a sutileza do paladar de muitos pratos, demonstra o temor da futura prevalência dos sabores pobres na nova gastronomia globalizada. No sentido inverso do que usei, Houaiss realiza metáfora profética e mais elaborada daquilo que nos espera.

Nos nossos periódicos,
inexiste a crítica literária.

E quanto nós brasileiros contribuímos para isso? Muito. Na quase totalidade de nossos periódicos, inexiste a crítica literária, substituída por resenhas informativas, quando muito; laudatórias, quase sempre. Tem-se a impressão de que os espaços são comprados por algumas editoras, tal é o grau de predomínio de algumas delas. Algumas: uma ou duas. Nesses pedaços de jornais e revistas onde ocorre a sub-crítica, constatamos uma desproporcional presença das traduções de livros destinados ao mercado global, com lançamentos simultâneos em diversos idiomas e países, precedidos de milionárias campanhas publicitárias. Como se tudo isso já não fosse o suficiente, a Lei do Livro que subsidia o papel para as edições deste produto cultural, beneficia com a mesma generosidade tanto aquelas edições globais como as publicações de escritores brasileiros. Nenhuma xenofobia, nada contra a tradução de bons autores de qualquer origem, mas o que conhecemos da América Latina, da África, do mundo árabe, do extremo oriente, do leste europeu…? Quase nada. E quando algum livro, proveniente desses ricos celeiros culturais, chega até nós, vem embalado pela superprodução do mercado global, ou seja, trazem o exotismo já temperado pelo predominante catchup.

O exotismo é outro dos componentes reducionistas da globalização cultural: o Brasil é samba, futebol, mulatas; a América do Sul, realismo fantástico. Um parêntese para os árabes: devem ser críticos da repressão e do atraso islâmicos. Na mesma linha, os europeus do leste têm que lamentar os opressivos anos do comunismo.

Apenas europeus sabem fazer música erudita; apenas estadunidenses fazem jazz e cinema. E ambos literatura universal. Dos periféricos se esperam apenas produtos típicos, eivados de clichês e exotismos. Assim, além da notável dominação cultural, que põe em risco nossa identidade, e, por essa via, a própria noção de soberania, estamos a alimentar a grande máquina da indústria cultural e oferecendo de mão beijada nosso nada desprezível mercado interno.

Livros brasileiros na Europa:
0,5% do total das traduções.

A afirmação é confirmada pelo agente cultural Ray-Güde Mertin, admirador da literatura brasileira e promotor de nova tradução para o inglês de Grande Sertão: Veredas, a ser empreendida pelo competente Gregory Rabassa. Mertin, em entrevista a O Globo (4/11/2006) acrescenta dados significativos: Os livros brasileiros na Europa não passam de 0,5% do total das traduções. Prossegue: “Nos EUA e na Inglaterra é ainda mais difícil. Ambos traduzem muito menos. De todas as obras publicadas em língua inglesa nos EUA e na Inglaterra, 50% são traduzidas para outros idiomas no mundo, mas apenas 6% dos livros em outros idiomas são traduzidos para o inglês”.

Coroamos o processo com nossa atávica vocação ao colonialismo, no caso, pelo reforço aos clichês que nos são aplicados. Em 2005, ano em que a França homenageou a cultura brasileira, levamos para Paris carnaval e música popular (qual delas?). A indigência irritou alguns intelectuais franceses conhecedores do Brasil como Serge Gruzinski, professor na Ehess (École des Hautes Études em Sciences Sociales): “Eu gostaria que se falasse de Clarice Lispector, Sérgio Buar¬que de Holanda, Gilberto Freyre ou Benedito Nunes. O Brasil tem intelectuais que podem nos fornecer categorias para pensar a Europa de hoje, a mestiçagem. Mas, se a programação ficar somente em torno das diversões e do espetáculo, não se aproveitará a oportunidade para descobrir outro Brasil”. Ao mesmo tempo, Michel Maffesoli, professor na Sorbonne afirmava: “As pessoas pensam que a França conhece bem o Brasil, mas para os franceses o país se resume ao Carnaval do Rio.” Por fim, vale a pena reproduzir o que é afirmado por Pierre Rivas, professor de literatura comparada na Universidade Paris 10: “O governo não ajudou as traduções. Não traduziram João Cabral de Melo Neto, mas traduziram livros de auto-ajuda, isso nunca existiu na tradição literária francesa.”

Oportunidades deste tipo não se podem diluir na macumba para turista, para citar Oswald de Andrade; nem a azeite de dendê com sabor catchup.


Editorial da Revista O Escritor, nº 114, dez.2006.

Sobre levi

Poeta, ficcionista, ensaísta, sociólogo e professor universitário. Presidente da UBE - União Brasileira de Escritores, diretor do Sindicato dos Sociólogos de S. Paulo e Presidente do IPSO - Instituto de Pesquisas e Projetos Sociais e Tecnológicos. Integra a Coordenação do Movimento Humanismo e Democracia e o Conselho de Redação da Revista Novos Rumos. Foi Presidente da ASESP – Associação dos Sociólogos do Estado de São Paulo, Administrador Regional de Santana -Tucuruvi (SP). Coordenador da Proteção dos Recursos Naturais do Estado de São Paulo. Livros Publicados: Burocratas e Burocracias (ensaio, SP, Ed. Semente, 1981); Ônibus 307 – Jardim Paraíso (poesia, SP, Muro das Artes, 1983); A Portovelhaca e as Outras (poesia, SP, Paubrasil, 1984). O Seqüestro do Senhor Empresário (romance, SP, Publisher/Limiar, 1998); O Inimigo (contos, Limiar – SP, 2003). Recebeu o Prêmio de Revelação de Autor da APCA – Associação Paulista de Críticos de Arte e outros. Publicou diversos artigos, contos, crônicas, poemas e resenhas literárias em coletâneas, jornais e revistas.
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1 Response to GLOBALIZAÇÃO E CATCHUP

  1. Great article, adding it to my favourites!

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