Direitos do Público no FAIA 2010

Alguns depoimentos, com destaque para o de Alfredo Manevy, Secretário Executivo do Ministério da Cultura, no 5º Festival de Atibaia Internacional do Audiovisual (FAIA).

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Os direitos autorais e os escritores

Artigo de Carlos Seabra, escrito para o Seminário “Autores, Artistas e seus Direitos” (ocorrido no Rio de Janeiro, dias 27 e 28 de outubro de 2008), promovido pelo Ministério da Cultura.

O “direito do autor” nasceu há cerca de 300 anos, em vários lugares do mundo assumindo características diferentes e mudando ao longo desse período inúmeras vezes e em diversos aspectos.

A discussão que o Fórum Nacional de Direito Autoral possibilita é de enorme importância para todos os envolvidos, dos autores a seus leitores, passando pelos intermediários, também importantes partícipes nesta questão.

Os direitos autorais não podem ser reduzidos a um único aspecto, ao contrário, devem ser encarados sob diferentes perspectivas: da sociedade, da cultura do País, dos leitores, dos autores, da área editorial, da educação – levando em conta que cada uma dessas perspectivas, já per si, carrega muitas vezes contradições com outros aspectos do problema. Portanto, a primeira coisa a fazer é mapear claramente as variáveis envolvidas, os entraves percebidos na atual legislação, as novas propostas, as contradições entre os diversos interesses.

Somente com um levantamento e equacionamento claro das questões relacionadas será possível engajar os setores envolvidos, bem como a sociedade em geral, num debate frutífero, permitindo juntar as concordâncias de um lado, listar as dúvidas de outro, e ter clareza das divergências e seus motivos.

Vejamos alguns desses aspectos a considerar. À sociedade como um todo interessa o acesso às obras literárias, e para que esse acesso ocorra as obras esgotadas devem ser reimpressas, novas obras devem ser editadas, a distribuição deve chegar a todos os locais, livrarias, bibliotecas, com preços acessíveis e tiragens significativas. A atual estrutura produtiva, envolvendo edição, distribuição e venda, necessita de boa parte do arcabouço assegurado pelo copyright, e os autores necessitam ser lidos e serem remunerados, ou pelo menos uma das duas coisas.

Existem diferentes tipos de autores, e várias necessidades de direitos. O autor que vende muito e vive disso, inclusive os da área de didáticos e paradidáticos, tem um tipo de interesse diferente do autor que não possui mercado mas deseja ser lido – para este, uma flexibilização dos direitos de reprodução pode abrir até novas perspectivas. Outra situação ainda é a de obras cujo autor já faleceu e a procura dos detentores dos direitos configura tarefa árdua e custosa, ou obras cujo interesse de reedição a editora não tem nem tampouco cede seus direitos a quem as deseje publicar.

Assim, a questão da flexibilização de direitos tem diferentes aspectos a considerar, dependendo da situação e da natureza da obra e de seu status. Se, por um lado, temos obras com valor específico de mercado, com características próprias de exploração (tais como livros didáticos, por exemplo), outras quase não possuem valor de mercado, mas sim valor cultural (obras esgotadas que não encontram interessado em seu relançamento, pequenas tiragens de autor etc.).

Há ainda outros interesses a levar em conta, tal como o interesse da cultura nacional, que envolve necessariamente políticas públicas que contemplem os interesses maiores da sociedade, pois há que se considerar também nesta questão os direitos do público. Nascida na área do audiovisual, por iniciativa da Federação Internacional de Cineclubes, a Carta de Tabor levantou este aspecto em 1987, referente aos direitos do público – num documento que hoje está mais atual e relevante do que nunca e cuja abrangência de conceitos pode e deve ser trazido para a área da literatura e outras.

Outro fator a levar em conta, o poder econômico pode gerar distorções na aplicação das leis e isto freqüentemente paralisa atividades culturais e educativas. Aqui, o uso justo (fair use) é algo a ser discutido, pois é um conceito largamente usado em outros países e que no nosso não existe juridicamente.

O atual formato da lei dá muito poder aos intermediários e empresas da indústria cultural, em detrimento dos próprios autores, em sua imensa maioria não beneficiados com o produto econômico de suas obras.

Nisto, também entra a discussão de formatos alternativos ao Copyright, tal como o Creative Commons – que, ao contrário do que muita gente pensa, não significa liberação total de todos os direitos de toda a obra, e sim a reserva de alguns direitos (que o licenciante define quais são, se trechos podem ser usados para obras derivadas, se pode ou não haver uso comercial, e mais uma série de características definidas pelo autor). Assim, um autor pode permitir que se copie, distribua ou crie obras derivadas sem necessidade de consulta prévia. Para tal, basta que se dê os créditos ao autor, não se utilize o conteúdo com fins comerciais e que, no caso de transformação, alteração ou criação com base na obra, o novo material use a mesma licença. E um autor não necessita licenciar toda a sua obra, podendo fazer uma experiência com um de seus livros ou com contos ou poemas, só para ver o que ocorre.

Esta modalidade tem ocorrido geralmente em publicações na internet, em sites ou blogs de autores, em portais de conteúdo colaborativo, e mesmo na publicação editorial em suporte digital, para download – trazendo muitas vezes novas possibilidades de distribuição, possibilitando o acesso à leitura de obras que estariam fadadas à não circulação.

O tempo de validade, após a morte do autor, da exploração dos direitos autorais deve ser também motivo de debate, pois ao longo do tempo tem vindo a ser ampliado (o chamado efeito “Disney”, pois sempre que o rato Mickey vai cair em direito público, tem sido prorrogada a vigência dos direitos sobre a obra) e muitas vezes torna impeditiva a reedição da obra, cujos direitos estão reservados, mas não se encontra quem os detenha para negociar.

É fundamental garantir os direitos autorais ao escritor (inclusive àqueles que escrevem sob contrato de trabalho em órgãos de comunicação), considerando também o interesse da cultura nacional e os direitos do público, levando em conta a cadeia produtiva editorial mas buscando-se impedir a privatização de nossa cultura por parte das grandes empresas.

Carlos Seabra (carlos.seabra@cineclubes.org.br), foi Vice-Presidente da UBE – União Brasileira de Escritores – na gestão 2006/2008, é Diretor de Acervo e Difusão do CNC – Conselho Nacional de Cineclubes – gestão 2008/2010, e é coordenador editorial no Núcleo de Educação da TV Cultura, Fundação Padre Anchieta.

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A economia do conhecimento

Artigo de Ladislau Dowbor, publicado em seu livro “Democracia econômica – Alternativas de gestão social”, de 2007 (disponível na íntegra, para download, em seu website http://www.dowbor.org).

De certa forma, as mesmas tecnologias que favorecem a globalização podem favorecer os espaços locais, as dimensões participativas, uma conectividade democrática. Para as multinacionais, as novas tecnologias implicam numa pirâmide mais alta, com o poder central de uma mega-corporação extendendo dedos mais compridos para os lugares mais distantes, graças ao poder da conectividade de transmitir ordens mais longe. Implicam também uma forte presença planetária de poder repressivo visando o controle da propriedade intelectual crescentemente apropriada pelas próprias empresas transnacionais.

Para nós, estas tecnologias permitem uma rede mais ampla e mais horizontal, com cada localidade recuperando a sua importância ao cruzar a especificidade dos interesses locais com o potencial da colaboração planetária. Dedos mais longos das mesmas corporações não descentralizam nada, apenas significam que a mesma mão tem alcance maior, que a manipulação se dá em maior escala. A apropriação local do potencial de conectividade representa uma dinâmica de democratização.

A mudança nas tecnologias da informação e da comunicação que abre estas novas opções, no entanto, está articulada com mudanças tecnológicas mais amplas, que estão elevando o conteúdo de conhecimento de todos os processos produtivos, e reduzindo o peso relativo dos insumos materiais que outrora constituiam o fator principal de produção.

O conhecimento é um fator de produção? Como se desenvolve a teoria do que Castells chamou de “novo paradigma sócio-técnico”? Castells introduz a categoria interessante de fatores informativos de produção, que nos leva a uma questão básica: o conhecimento se regula de maneira adequada através dos mecanismos de mercado, como por exemplo os bens e serviços no quadro de uma economia industrial?

O deslocamento do eixo principal de formação do valor das mercadorias do capital fixo para o conhecimento nos obriga a uma revisão em profundidade do próprio conceito de modo de produção. André Gorz coloca o dedo no ponto preciso ao considerar que “os meios de produção se tornaram apropriáveis e suscetíveis de serem partilhados. O computador aparece como o instrumento universal, universalmente acessível, por meio do qual todos os saberes e todas as atividades podem, em princípio, ser partilhados”.

A economia do conhecimento está apenas nascendo. Lawrence Lessig nos traz uma análise sistemática e equilibrada deste desafio maior que hoje enfrentamos: a gestão da informação e do conhecimento. O livro de Lessig, focando de maneira precisa como se desenvolve a conectividade planetária, leva cada questão – a da apropriação dos meios físicos de transmissão, a do controle dos códigos de acesso, a do gerenciamento dos conteúdos – a um nível que permite uma avaliação realista e a formulação de propostas práticas. O livro anterior dele, Code, já marcou época. O The Future of Ideas é simplesmente brilhante em termos de riqueza de fontes, de simplicidade na exposição, de ordenamento dos argumentos em torno das questões chave.

Andamos todos um tanto fracos na compreensão destas novas dinâmicas, oscilando entre visões tétricas do Grande Irmão, ou uma idílica visão da multiplicação das fontes e meios que levariam a uma democratização geral do conhecimento. A realidade, como em tantas questões, é que as simplificações não bastam, e que devemos fazer a lição de casa, estudar o que está acontecendo.

Tomemos como ponto de partida o fato que hoje, quando pagamos um produto, 25% do que pagamos é para pagar o produto, e 75% para pagar a pesquisa, o design, as estratégias de marketing, a publicidade, os advogados, os contadores, as relações públicas, os chamados “intangíveis”, e que Gorz chama de ‘o imaterial’. É uma cifra vaga mas razoável, e não é a precisão que nos interessa aqui. Interessa-nos o fato do valor agregado de um produto residir cada vez mais no conhecimento incorporado. Ou seja, o conhecimento, a informação organizada, representam um fator de produção, um capital econômico de primeira linha. A lógica econômica do conhecimento, no entanto, é diferente da que rege a produção física. O produto físico entregue por uma pessoa deixa de lhe pertencer, enquanto um conhecimento passado a outra pessoa continua com ela, e pode estimular na outra pessoa visões que irão gerar mais conhecimentos e inovações. Em termos sociais, portanto, a sociedade do conhecimento acomoda-se mal da apropriação privada: envolve um produto que, quando socializado, se multiplica. Portanto, o valor agregado ao produto pelo conhecimento incorporado só se transforma em preço, e consequentemente em lucro maior, quando este conhecimento é impedido de se difundir. A batalha do século XX, centrada na propriedade dos meios de produção, evolui para a batalha da propriedade intelectual do século XXI.

De certa maneira, temos aqui uma grande tensão, de uma sociedade que evolui para o conhecimento, mas regendo-se por leis da era industrial. O essencial aqui, é que o conhecimento é indefinidamente reproduzível, e portanto só se transforma em valor monetário quando apropriado por alguém, e quando quem dele se apropria coloca um pedágio, “direitos”, para se ter acesso. Para os que tentam controlar o acesso ao conhecimento, este só tem valor ao se criar artificialmente, por meio de leis e repressão e não por mecanismos econômicos, a escassez. Por simples natureza técnica do processo, a aplicação à era do conhecimento das leis da reprodução da era industrial trava o acesso. Curiosamente, impedir a livre circulação de idéias e de criação artística tornou-se um fator, por parte das corporações, de pedidos de maior intervenção do Estado. Os mesmos interesses que levaram a corporação a globalizar o território para facilitar a circulação de bens, levam-na a fragmentar e a dificultar a circulação do conhecimento.

A questão central de como produzimos, utilizamos e divulgamos o conhecimento envolve portanto um dilema: por um lado, é justo que quem se esforçou para desenvolver conhecimento novo seja remunerado pelo seu esforço. Por outro lado, apropriar-se de uma idéia como se fosse um produto material termina por matar o esforço de inovação. Lessig nos traz o exemplo de diretores de cinema nos Estados Unidos que hoje filmam com advogados na equipe: filmar uma cena de rua onde aparece por acaso um outdoor pode levar imediatamente a que a empresa de publicidade exija compensações; filmar o quarto de um adolescente exige uma longa análise jurídica, pois cada flâmula, poster ou quadro pode envolver uso indevido de imagem, gerando outras contestações. A propriedade intelectual não tem limites?

Numa universidade americana, com a compra das revistas científicas por grandes grupos econômicos, um professor que distribuiu aos seus alunos cópias do seu próprio artigo foi considerado culpado de pirataria. Poderia quando muito exigir dos seus alunos que comprem a revista onde está o seu artigo. Todos conhecem o absurdo patente concedido à Amazon, proibindo outras empresas de utilizar o “one-click” para compras. Um raciocínio de bom senso é que se o “one-click” é bom, deve ter dado lucro à Amazon, que é a forma normal de uma empresa se ver retribuída por uma inovação, e não impedindo outras de utilizar um processo que já era de domínio público. Estamos na realidade travando a difusão do progresso, em vez de facilitá-la.

Lessig parte da visão – explícita na Constituição americana – de que o esforço de desenvolvimento do conhecimento deve ser remunerado, mas o conhecimento em sí não constitui uma “propriedade” no sentido comum. Por exemplo, numerosos copyrights são propriedade de empresas que por alguma razão não têm interesse em utilizar ou desenvolver o conhecimento correspondente, ficando assim uma área congelada. Em outros países, prevalece o princípio de “use it or lose it”, de que uma pessoa ou empresa não pode paralisar, através de patentes ou de copyrights, uma área de conhecimento. O conhecimento tem uma função social. O meu carro não deixa de ser meu se eu o esqueço na garagem. Mas idéias são diferentes, não devem ser trancadas, o seu desenvolvimento por outros não deve ser impedido.

Na base desta visão está o fato de que o conhecimento não nasce isolado. Toda inovação se apoia em milhares de avanços em outros períodos, em outros países, e com o crescente encalacramento jurídico multiplicam-se as áreas ou os casos em que realizar uma pesquisa envolve tantas complicações jurídicas que as pessoas simplesmente desistem, ou a deixam para mega-empresas com seus imensos departamentos jurídicos. A inovação, o trabalho criativo, não é só um “output”, é também um “input” que parte de inúmeros esforços de pessoas e empresas diferentes. Precisa de um ambiente aberto de colaboração. A inovação é um processo socialmente construido, e deve haver limites à sua apropriação individual.

O problema se agrava drásticamente quando não só as idéias, como os veículos da sua transmissão, passam a ser controlados. Quando uma produtora de Hollywood controla não só a produção de conteúdos (o filme), mas também os diversos canais de distribuição e até salas de cinema, o resultado é que a liberdade de circulação de idéias se desequilibra radicalmente. Lessig constata que filmes estrangeiros nos Estados Unidos, que representavam há poucos anos 10% da bilheteria, hoje representam 0,5%, gerando uma cultura perigosamente isolada do mundo. O que está acontecendo, com o controle progressivo dos três níveis – infraestrutura física, códigos e conteúdos – é que a liberdade de circulação das idéias, inclusive na internet, está se restringindo rapidamente. Grandes empresas não param de vasculhar os nossos computadores, através dos “spiders” ou “bots”, para ver se por acaso não mencionamos sem as devidas autorizações o nome ou um grupo de idéias protegidas.

Um texto de 1813 de Thomas Jefferson, citado no livro, é neste sentido muito eloquente: “Se há uma coisa que a natureza fez que é menos suscetível que todas as outras de propriedade exclusiva, esta coisa é a ação do poder de pensamento que chamamos de idéia….Que as idéias devam se expandir livremente de uma pessoa para outra, por todo o globo, para a instrução moral e mútua do homem, e o avanço de sua condição, parece ter sido particularmente e benevolmente desenhado pela natureza, quando ela as tornou, como o fogo, passíveis de expansão por todo o espaço, sem reduzir a sua densidade em nenhum ponto, e como o ar no qual respiramos, nos movemos e existimos fisicamente, incapazes de confinamento, ou de apropriação exclusiva. Invenções não podem, por natureza, ser objeto de propriedade.”

Uma empresa que instala uma das infraestruturas importantes que é o cabo é proprietária deste cabo. Mas ela pode ditar quem pode ou quem não pode ter acesso para transmitir neste cabo? Uma empresa pode encontrar incentivo econômico em fazer acordos com outras empresas, garantindo exclusividade, um tipo de curral de comunicação. A Disney batalhou duramente, por exemplo, para ter este tipo de exclusividade. A crueza das batalhas empresariais neste plano abre pouco espaço para o fim último de todo o processo, tão bem expresso por Thomas Jefferson, que é a utilidade social da circulação das idéias. Um governo pode até privatizar a manutenção de uma estrada, e autorizar pedágio, mas assegura o seu caráter público, nenhuma administradora pode impedir o livre acesso de qualquer pessoa a esta estrada. E na infovia, como funciona? Em muitas cidades americanas, como Chicago, a prefeitura está instalando cabos públicos, para assegurar que os usuários possam receber e transmitir o que querem, reduzindo a pressão de empresas privadas para fazer acordos de acesso exclusivo para determinado tipo de clientes. No Canadá, o processo está se generalizando, em reação aos controles que as empresas estão instalando. Como as estradas, as infovias devem constituir os chamados commons, espaços comuns que permitem que os espaços privados comuniquem, interajam com liberdade.

A análise detalhada do uso do espectro de ondas de rádio e TV é neste sentido muito significativa. Na prática, o governo americano concede faixas do espectro a gigantes da comunicação, como o fazemos no Brasil, eliminando virtualmente a possibilidade de cada comunidade ter os seus meios de comunicação, coisa hoje técnicamente perfeitamente possível e barata. O que nos repetem sempre, é que o espectro é limitado, e portanto deve ser atribuído a alguns, e estes alguns naturalmente monopolizam o acesso.

O primeiro fato é que a emissão de curto alcance (low power radio service) é perfeitamente possível, e não deveria ser condenada como pirataria. O segundo, mais importante, é que a idéia do espectro ser limitado é defendida pelas empresas, mas é verdadeira apenas porque utilizam tecnologias que desperdiçam o espectro: como têm o monopólio, não se interessam por exemplo pelo compartilhamento de faixas (software defined radios) que permitem utilizar as ondas da mesma forma que em outros meios, aproveitando os “silêncios” e subutilizações de espectro para assegurar diversas comunicações simultâneas, como hoje acontece em qualquer linha telefônica. Lessig é duro com esse impressionante desperdicio de uma riqueza tão importante – e natural, não foi criada por ninguém, tanto assim que é concedida por licença pública – que é o espectro eletromagnético: “Poluição é precisamente a maneira como deveríamos considerar estas velhas formas de uso do espectro: torres grandes e estúpidas invadem o éter com emissões poderosas, tornando inviável o florecimento de usos em menor escala, menos barulhentos e mais eficientes…A televisão comercial, por exemplo, é um desperdiçador exraordinário de espectro; na maior parte dos contextos, o ideal seria transferi-la do ar para fios.”

Lessig é um pragmático. No caso do espectro, por exemplo, propõe que se expanda em cada segmento do espectro uma faixa de livre acesso, equilibrando a apropriação privada. Nas várias áreas analisadas, busca soluções que permitam a todos sobreviver. Mas a sua preocupação é clara. Em livre tradução, “a tecnologia, com estas leis, nos promete agora um controle quase perfeito sobre o conteúdo e a sua distribuição. E é este controle perfeito que ameaça o potencial de inovação que a Internet promete”.

Rifkin analisa o mesmo processo de outro ponto de vista, pondo em evidência em particular o fato da economia do conhecimento mudar a nossa relação com o processo econômico em geral. O argumento básico é que estamos passando de uma era em que havia produtores e compradores, para uma era em que há fornecedores e usuários. A mudança é profunda. Na prática, não compramos mais um telefone (ou a compra é simbólica). Mas pagamos todo mês pelo direito de usá-lo, de nos comunicarmos. Pagamos também para ter acesso a programas de televisão um pouco mais decentes. Já não pagamos uma consulta médica: pagamos mensalmente um plano para ter direito de acesso a serviços de saúde. A nossa impressora custa uma bagatela, o importante é nos prender na compra regular do “toner” exclusivo.

Os exemplos são inúmeros. Rifkin define esta tendência como caracterizando “a era do acesso”. No nosso “A Reprodução Social” já analisamos esta tendência, que caracterizamos com o conceito de “capitalismo de pedágio”. Basta ver o montante de tarifas que pagamos para ter direito aos serviços de um banco, ou como os condomínios de praia fecham o acesso a um pedaço de mar, e nas publicidades nos “oferecem”, como se as tivessem criado, as suas maravilhosas ondas. O acesso gratuito ao mar não enche os bolsos de ninguém. Fechemos pois as praias.

Assim o capitalismo gera escassez, pois a escassez eleva os preços. Nesta lógica do absurdo, quanto menos disponíveis os bens, mais ficam caros, e mais adquirem valor potencial para quem os controla. Nada como poluir os rios para nos obrigar a um “pesque-pague”, ou a nos induzir a comprar água “produzida”.

Com isto, vão desaparecendo todos os espaços gratuitos, e ficamos cada vez mais presos na corrida pelo aumento da nossa renda mensal, sem a qual nos veremos privados de uma série de serviços essenciais, inclusive a participação na cultura que nos cerca. Viver deixa de ser um passeio, ou uma construção que nos pertence, para se transformar numa permanente corrida de pedágio em pedágio. Onde antes as pessoas tinham o prazer de tocar um instrumento, hoje pagam o direito de acessar a música. Onde antes jogavam uma pelada na rua, hoje assistem um espetáculo esportivo, enquanto mastigam salgadinhos no sofá, tudo graças ao “pay-per-view“.

O deslocamento teórico é significativo. O proprietário de meios de produção tinha a chave da fábrica, bem físico que constituia uma propriedade concreta: hoje é dono de um processo, e cobra pela sua utilização. E como os processos tornam-se cada vez mais densos em informação e conhecimento, assume maior importância a propriedade intelectual, patentes e copyrights. Como o conhecimento constitui um bem que não deixa de pertencer a alguém quando o passa a outros, – e estamos na era da tecnologia da conectividade – a sua facilidade de disseminação torna-se imensa, e a apropriação privada gera entraves. Vemos assim todo o peso da constatação de Gorz vista acima, de que “os meios de produção se tornaram apropriáveis e suscetíveis de serem partilhados”. Não é à toa que a negociação TRIPs (Trade Related Intellectual Property) constitui o principal debate na Organização Mundial do Comércio, e está no centro das lutas por uma sociedade livre.

“A inovação, escreve Stiglitz, está no coração do sucesso de uma economia moderna. A questão é de como melhor promovê-la. O mundo desenvolvido arquitetou cuidadosamente leis que dão aos inovadores um direito exclusivo às suas inovações e aos lucros que delas fluem. Mas a que prêço? Há uma sentimento crescente de que algo está errado com o sistema que governa a propriedade intelectual. O receio é que o foco nos lucros para as corporações ricas represente uma sentença de morte para os muito pobres no mundo em desenvolvimento.”

Por exemplo, explica Stiglitz, “isto é particularmente verdadeiro quando patentes tomam o que era previamente de domínio público e o “privatizam” – o que os juristas da Propriedade Intelectual têm chamado de novo “enclosure movement”. Patentes sobre o arroz Basmati (que os indianos pensavam conhecer havia centenas de anos), ou sobre as propriedades curativas do turmeric (gengibre) constituem bons exemplos”.

Segundo o autor, “os países em desenvolvimento são mais pobres não só porque têm menos recursos, mas porque há um hiato em conhecimento. Por isto o acesso ao conhecimento é tão importante. Mas ao reforçar o controle (stranglehold) sobre a propriedade intelectual, as regras de PI (chamadas TRIPS) do acordo de Uruguay reduziram o acesso ao conhecimento por parte dos países em desenvolvimento. O TRIPS impôs um sistema que não foi desenhado de maneira ótima para um país industrial avançado, mas o foi ainda menos adequado para um país pobre. Eu era membro do Conselho Econômico do presidente Clinton na época em que a negociação do Uruguay Round se completava. Nós e o Office of Science and Technology Policy nos opunhamos ao TRIPS. Achávamos que era ruim para a ciência americana, ruim para o mundo da ciência, ruim para os países em desenvolvimento”.

É uma tomada de posição importante, nesta época em que é bom tom respeitar a propriedade intelectual, sem que as pessoas se dêm conta que estamos essencialmente respeitando a sua monopolização e controle por intermediários. Precisamos de regras mais flexíveis e mais inteligentes, e sobretudo reduzir os prazos absurdos de décadas que extrapolam radicalmente o tempo necessário para uma empresa recuperar os seus investimentos sobre novas tecnologias. Quanto a patentear bens naturais de países pobres para em seguir cobrar royalties sobre produções tradicionais, já é simplesmente extorsão. A pirataria, neste caso, vem de cima.

Assim a economia do conhecimento desenha uma nova divisão internacional do trabalho, entre os países que se concentram nos intangíveis – pesquisa e desenvolvimento, design, advocacia, contabilidade, publicidade, sistemas de controle – e os que continuam com tarefas centradas na produção física. Onde antigamente tínhamos a produção de matérias primas num polo, e produtos industriais no outro, hoje passamos a ter uma divisão mais fortemente centrada na divisão entre produção material e produção imaterial.

Uma leitura particularmente interessante sobre este tema é o livro de Chang, Chutando a Escada, que mostra como os países hoje desenvolvidos se apropriaram dos conhecimentos gerados em qualquer parte do mundo, por meio de cópia, roubo ou espionagem, sem se preocuparem na época com a propriedade intelectual. Utilizaram a escada para subir, e agora a chutaram para o lado, impedindo outros de seguirem o seu caminho. O que seria do Japão, ou da Coréia, se tivessem sido obrigados a fechar os olhos sobre as inovações no resto do mundo, ou a pagar todos os royalties? O livro de Chang é extremamente bem documentado, e mostra como antes dos asiáticos os Estados Unidos já adotaram as mesmas práticas, bem como a Inglaterra. O livre acesso dos paises pobres ao conhecimento, condição essencial do seu progresso e do reequilibramento planetário, é hoje sistematicamente travado, quando deveria ser favorecido e subvencionado, para reduzir as tragédias sociais e ambientais que se avolumam.

Em outro nível, a mudança no conteúdo da produção gera novas relações de produção, e desloca a questão da remuneração do trabalho. Medir o trabalho por horas trabalhadas torna-se, nesta esfera de atividades, cada vez menos significativo. A contribuição criativa com idéias inovadoras não vai depender do tempo que passamos sentados no escritório. Gorz cita um relatório do diretor de recursos humanos da Daimler-Chrysler: a contribuição dos “colaboradores”, como os chama gentilmente o diretor, “não será calculada pelo número de horas de presença, mas sobre a base dos objetivos atingidos e da qualidade dos resultados. Eles são empreendedores”. Os trabalhadores são assim promovidos a empreendedores, e porque não, segundo Gorz, a empresários: “No lugar daquele que depende do salário, deve estar o empresário da força de trabalho, que providencia sua própria formação, aperfeiçoamento, plano de saúde etc. ‘A pessoa é uma empresa’. No lugar da exploração entram a auto-exploração e a autocomercialização do ‘Eu S/A’, que rendem lucros às grandes empresas, que são os clientes do auto-empresário”.

O que estamos tentando desenhar aqui, não é um conjunto de respostas, mas o leque de questões teóricas que nos desafia como economistas, e que resulta diretamente desta ampla tendência que chamamos de economia do conhecimento. O eixo de apropriação de mais-valia desloca-se do controle da fábrica para o controle da propriedade intelectual, mudam as relações de produção, altera-se o conteúdo e a remuneração nas trocas internacionais. São eixos de reflexão que exigem novos instrumentos de análise, e os autores citados acima estão abrindo espaços que vale a pena acompanhar.

O Brasil neste plano enfrenta uma situação peculiar, pois ao internalizar a relação Norte-Sul, através da instalação do amplo polo transnacional na região Sudeste do país, enfrenta tanto as contradições mais avançadas geradas pela economia do conhecimento, como a precarização que o sistema gera através de terceirização, além das relações de produção extremamente atrasadas que constituem heranças de outros ciclos econômicos.

O desafio da democratização da economia adquire aqui uma dimensão interessante, pois o acesso ao conhecimento, como novo fator de produção, pode tornar-se um vetor privilegiado de inclusão produtiva da massa de excluídos. Como vimos, uma vez produzido, o conhecimento pode ser divulgado e multiplicado com custos extremamente limitados. Contrariamente ao caso dos bens físicos, quem repassa o conhecimento não o perde. O direito de acesso ao conhecimento torna-se assim um eixo central da democratização econômica das nossas sociedades.

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